Entrevista A BOLA: «Com VAR o penálti de Cardozo seria repetido e teria defendido outra vez»

Futebol Entrevista A BOLA: «Com VAR o penálti de Cardozo seria repetido e teria defendido outra vez»

FUTEBOL15.07.202323:53

Beto, em entrevista a A BOLA, fala da final da Liga Europa que ajudou a conquistar, no desempate por penáltis, contra o Benfica em 2014.


- Na sequência daquela final da Liga Europa, em 2014, os benfiquistas ainda o abordam na rua por causa daquele penálti de Cardozo, no qual se terá adiantado?
- Sim. Alguns utilizam uma forma muito mais de brincadeira, irónica; outros ainda insultam; é o que é; foi o que foi; foi como foi. Entendo a frustração das pessoas do Benfica porque era a segunda final consecutiva que o Benfica perdia, uma final europeia que o Benfica não ganhava há muito. Entendo a frustração e as críticas, a paixão pelos clubes, agora não entendo quando se  ultrapassam os limites. É triste, antigo.

- Cumpriu as regras em todos os penáltis?
- Não é uma questão de ter a noção se cumpri ou não as regras. Quem não joga futebol não tem noção nenhuma do que é jogar futebol e ser guarda-redes, defesa ou avançado; do que é o instinto, do momento, o fazer o que sai no momento. O que fiz no penálti do Cardozo foi instintivo. As imagens estão lá. Se me perguntar se dei um passo à frente? Dei, mas foi instintivo. No entanto, as pessoas não falam do penálti do Rodrigo e também o defendi. Aliás, na carreira defendi 48 penáltis, devo ser o guarda-redes com mais penáltis defendidos no seu percurso.

- Era apetência?
- Não, era instintivo. Tinha um instinto muito felino porque acreditava muito que podia defender. Obviamente que há muito trabalho, conhecimento do adversário, de quem bate, quem não bate. Mas o penálti é algo muito instintivo, muito felino; tem de se acreditar que ela [a bola] vai para lá e se ela vai para lá não pode entrar. Sempre encarei um penálti assim, sempre acreditei que ia defender todos os penáltis. Aliás, numa altura na Turquia tinha setenta e tal por cento de penáltis defendidos e isso é muito. Acreditava muito que ia defender. Na Finlândia, por exemplo, em 15 penáltis defendi nove ou dez, é muito. Se calhar tinha apetência mas era muito o meu instinto felino e acreditar que ia defender. A questão da final, quem joga futebol sabe que há coisas que acontecem por instinto. Se posso entender? Ao dia de hoje, mais friamente, posso entender a revolta das pessoas porque o guarda-redes deu um passo à frente, mas o Quim também deu um passo à frente numa final da Taça da Liga a defender as balizas do Benfica. E as pessoas não dizem nada. Porquê? Porque o Benfica ganhou essa Taça da Liga. Se é justo? Se calhar não é justo, posso entender a frustração, mas uma coisa é frustração outra é passar limites.

- Se houvesse VAR, as defesas dos penáltis na Liga Europa tinham sido validadas?
- No penálti do Cardozo, provavelmente, seria repetido mas provavelmente teria defendido outra vez porque ele ia mudar. Vamos lá ver uma coisa: o Cardozo nunca bateu um penálti para aquele sítio, nunca. O Cardozo batia sempre no meio ou em força, cruzado, para o lado esquerdo do guarda-redes. Tinha jogado várias vezes contra o Cardozo, já me tinha batido penáltis duas ou três vezes e estudei-o muitas vezes. Mas pegando nas minhas palavras, tinha instinto e o instinto era o meu instinto felino e eu achei que nesse dia, numa final europeia, o Cardozo ia ter a coragem de mudar. O que é facto é que ele mudou, bateu em jeito para o lado direito do guarda-redes, é verdade que o meu instinto foi adiantar-me um pouco. Se houvesse VAR, provavelmente tinham repetido o penálti mas eu não posso voltar a 2014 e apagar aquilo que foi a final da Liga Europa contra o Benfica. As pessoas questionam: ‘porque não devolves?’ Não faz sentido. Dizem também: ‘defendeste tudo, não tinhas nada de defender tudo.’ Então mas eu não tinha de defender tudo durante os 120 minutos, tinha de deixar as bolas entrar porque era uma equipa portuguesa? Não. Algumas pessoas não entendem que tinha de defender tudo durante os 120 minutos porque estava a defender as cores, naquele caso, do Sevilha. Se estivesse a defender as cores do Chaves ou do Leixões era igual, bem como se fosse do Sporting ou do Benfica. Tinha de defender aquelas cores, custasse o que custasse. Foi instintivo e não posso apagar o que aconteceu.

- O que faz com que o Sevilha ganhe tantas Ligas Europa?
- Não é fácil criar uma cultura de ganhar a Liga Europa. É como quando se diz que o Real Madrid criou uma cultura de ganhar a Liga dos Campeões. Isto não é assim tão taxativo. Mas há uma coisa que sei porque vivi, estive quatro épocas no Sevilha e ganhei três Ligas Europa seguidas e este ano vivi de muito perto a sétima; todos elas têm um denominador comum e o  slogan deste  ano é o que vale para as sete: ‘ninguém quer esta taça tanto como nós’. E a verdade é essa. Joguei contra muitas equipas e a forma como o Sevilha joga esta competição, a forma como o adeptos, a cidade vive esta prova não é normal. A cidade pára completamente para ver esta competição ou determinado jogo. Vivi este ano o jogo Manchester United-Sevilha e o Sevilha podia ter saído de Manchester com 0-4. Mas porque não desistiu e quis saiu de lá com 2-2 e trouxe a eliminatória para o Sánchez Pizjuán. E só quem viveu esse dia é que consegue perceber porque é que o United perdeu 0-3 com o Sevilha e podem perguntar aos jogadores do United o que viveram ao jogar naquele estádio e a viver aquele dia, é algo que não se consegue explicar muito bem. Joguei noutra equipa que venceu a Liga Europa, o FC Porto, mas ninguém consegue viver esta competição como o Sevilha.

- Acha que merecia ter sido mais vezes internacional?
- [gargalhada]. A questão do mérito é subjetiva porque vou acabar por ser egoísta e dizer que sim. Mas se não fosse assim nenhum treinador me queria. Tive três treinadores na Seleção: Carlos Queiroz, Paulo Bento e Fernando Santos. Todos eles, à sua maneira, gostavam de mim pelo meu talento, qualidade, mas também pela minha forma de ser competitiva e ao mesmo tempo respeitar as decisões. Nunca tive um único problema na Seleção com nenhum guarda-redes. Pelo contrário, sempre apoiei todos os guarda-redes que foram titulares. Estive sempre um pouco na sombra, fui o segundo guarda-redes durante 11 anos de Seleção. A única vez que me senti mais titular foi no Mundial do Brasil por causa daquele problema com o Rui [Patrício]. Gostava de ter sido mais vezes titular porque o merecer é subjetivo. Se calhar o Rui também merecia; o Beto merecia ser titular; o José Sá merecia ser titular; o Anthony [Lopes] merecia ser titular. Quem lá esteve está por algum motivo e se calhar é legítimo da parte deles pensarem que também podem ser titulares, mas o bom do futebol é isso: ter essa competitividade de ter e achar que mereces, mas ao mesmo tempo respeitar a decisão de quem manda.

- Quem foi o melhor futebolista com quem jogou?
- A minha resposta vai-se direcionar para um jogador que admiro: Cristiano Ronaldo. Admiro-o mesmo, à parte da amizade que possa ter com ele, admiro-o desde que ele tinha 12 anos porque temos alguns episódios que ele costuma contar, como aquele de quando ele chegou à equipa principal do Sporting e eu achava-me importante e o chamava de miúdo. Hoje em dia brincamos com essa situação, pois agora vemos onde e um e outro chegaram. Era injusto dizer que o Cristiano é o melhor atleta com quem joguei, mas vou dizer mais uns nomes. Um dos melhores com quem joguei chamava-se Hugo Machado, era um jogador completamente fora da caixa, fora do normal. Se hoje jogasse, o estádio enchia para o ver jogar, as pessoas pagavam bilhete, como faziam com o Ronaldinho Gaúcho para vê-lo jogar porque era verdadeiramente bonito vê-lo jogar. Outro com quem delirava vê-lo jogar era o Deco.

- E aquele que prometia muito nas camadas jovens e depois não chegou lá acima como se previa?
- Hugo Machado. Por razões diferentes, o Hugo Machado e o Santamaria foram jogadores que tinham tudo para fazer carreira melhor do que aquela que conseguiram efetivamente fazer e ser mais reconhecidos do que aquilo que são; tanto que o Santamaria até há bem pouco tempo era dos jogadores mais jovens a representar a equipa principal do Sporting, com 16 anos. O Santamaria nunca conseguiu ter aquele aproveitamento, aquela carreira que se previa. Por alguns motivos e alguns ele também sabe e assume o que podem ter sido más decisões porque não é só o azar. Defendo que não é só o azar porque acho que o jogador define o seu caminho pelas decisões que toma. Mas estes dois são aqueles que acho que deviam ter tido uma carreira muito mais reconhecida.

- Qual o treinador que mais o marcou?
- Vítor Oliveira porque na fase mais difícil da minha vida, num 5-0 do Leixões ao Marco e eu era o guarda-redes do Marco - fui o melhor em campo para A BOLA -, no final do jogo disse-me: ‘não estás aqui a fazer nada, vais ter de ir comigo, mas não vais para ficar comigo, vais para depois voares porque não podes ficar aqui a fazer nada’. E a verdade é que há um episódio bastante curioso: estava com o Vítor Oliveira no Lais de Guia, que é um bar na praia de Matosinhos; estava eu, o Vítor Oliveira e o Jesualdo [Ferreira]. Jesualdo era o treinador do SC Braga, então passei por Coimbra, reuni com a Académica, fizeram a oferta que tinham para fazer; viajei para Matosinhos, estive com Vítor Oliveira e Jesualdo Ferreira e este último queria-me em Braga, sendo o guarda-redes do SC Braga o Quim. E tinha o Vítor Oliveira, na Liga 2. Ele disse-me: ‘deixa-os falar, deixa falar o Jesualdo e eles todos; tu vens comigo para a Liga 2, vamos subir à I Liga, vais fazer uma época na I Liga e depois vais marchar, voar e ser o que quiseres ser’. A verdade é que fui com o Vítor Oliveira para o Leixões, para a Liga 2, colocámos o Leixões na I Liga, fizemos uma época histórica; virando da primeira para a segunda volta em primeiro, fomos a Alvalade vencer; não perdemos qualquer jogo com o Benfica, vencemos em Braga, acabámos em sexto, numa época histórica para o Leixões. Entretanto, surgiram diversas ofertas mas decidi ir para o FC Porto.

- Como vê o atual panorama do futebol português?
- Acho que o futebol português é, cada vez mais, um dos maiores viveiros do futebol mundial por mérito próprio. Obviamente, também, por falta de verba há que fazer um investimento muito maior na formação; e bem. Agora o futebol profissional também está um pouco relacionado com as questões financeiras; tem muita qualidade mas, ao mesmo tempo, nas equipas ditas grandes houve um decréscimo. Deu-se um crescimento no SC Braga e daí a aproximação aos outros três grandes porque já considero o SC Braga como um grande, porque o trajeto é digno de ser reconhecido já como um grande, mas relacionado também, um pouco, com este decréscimo de qualidade nos outros três. É verdade que o Benfica tem uma capacidade financeira que FC Porto e Sporting não têm; mérito para o Benfica pelo seu trabalho, seja de formação, seja de marketing, seja da marca Benfica. É verdade que é mérito…

- Como é que o Sporting vai dar a volta a esta situação? Continuando a apostar na formação?
- A aposta na formação terá sempre de ser feita porque nós não conseguimos, pura e simplesmente, comprar para ter resultados. Temos de formar, ter alguns resultados, potenciar e vender. Não somos um país com essa riqueza. A chave é a formação. Acho que o Sporting está muito bem liderado pelo Rúben [Amorim] porque acho que o Rúben tem uma liderança positiva, tem um bom projeto. O Rúben é a pessoa certa naquele lugar mas há sempre coisas em que o Sporting Clube de Portugal poderia melhorar. Mas seja o Sporting ou qualquer um. Falta ao Sporting, na minha perspetiva, referências; aquilo que o FC Porto sempre teve, o que o Benfica também vai tendo porque o que é que as pessoas identificam no FC Porto? A tal mística e essa mística não se lê em lado nenhum, tem de se transmitir de alguma forma. Quem transmite a mística e os valores do clube são pessoas. E são pessoas que se identifiquem com o clube, com os valores do clube. O Benfica está a fazer, o FC Porto está a fazer, o Sporting talvez tenha uma ou outra pessoa lá mas faz falta ao Sporting ter essas referências para que o ADN Sporting, que é um ADN muito forte, com 117 anos de história… não se pode perder. E são precisas pessoas que o transmitam.

- Como vê o último fenómeno de nome Diogo Costa?
- O Diogo é um fenómeno, um craque.

- Vai chegar ao topo da Europa?
- O Diogo é muito bom mas nós temos muito bons guarda-redes; uns melhores aproveitados outros não tão bem talvez porque o apelido não tenha a terminação certa… Se calhar o apelido Costa não soa tão bem como Costes ou Costic. Esse é um estigma que nos vai custar ainda até  o perdermos mas o Diogo tem revelado um crescimento e amadurecimento muito sólidos, consistente. É um guarda-redes muito completo pode tornar-se um dos melhores guarda-redes portugueses de sempre. Muita gente me pergunta se o Diogo pode ser? Claro que pode. Se tem capacidade e competência para isso? Está à vista de todos. Diogo Costa tem capacidade e competência para ser um dos melhores guarda-redes portugueses. Mas durante os 20 anos de carreira, o Diogo terá de tomar boas decisões, terá de dar respostas, terá de ganhar títulos. Mas sobram condições ao Diogo Costa porque é, verdadeiramente, um grande guarda-redes.

- Estão a pedir demais aos guarda-redes quando lhes pedem para ser bons com os pés?
- O guarda-redes cada vez mais faz parte dum conceito e modelo de jogo, é o 11.º jogador com bola, pelo menos na primeira fase; embora alguns façam passes de 70 metros e isolem companheiros… Acho que o guarda-redes cada vez tem um papel mais preponderante com bola e é uma mais-valia para os treinadores e para quem gosta de ter bola. O guarda-redes de hoje em dia tem obrigatoriamente de saber jogar com os pés…

- Mas não se descura um pouco a componente de o guarda-redes ser para defender?
- Não. Isto é como os defesas laterais-direitos. A primeira função do defesa lateral-direito é defender mas, depois, quanto maior leque de capacidades tiver, melhor para o treinador. Se defendes bem e ainda crias desequilíbrios no ataque, melhor e um guarda-redes que tenha todas as capacidades de baliza e o plus de saber criar desequilíbrios, com os pés, é apetecível para qualquer treinador.