Entrevista A BOLA: «Chorei muitas vezes sozinho»

Futebol Entrevista A BOLA: «Chorei muitas vezes sozinho»

FUTEBOL15.07.202323:46

Beto, 41 anos, anunciou, no fim de junho, o fim da carreira. Em entrevista de A BOLA, fala da carreira, dos momentos felizes e tristes. E não só.

- Que balanço faz deste longo percurso no futebol?

- O balanço é superpositivo, melhor até do que aquilo que algum dia imaginava com 7, 8, 9, 10 anos. Se sonhava, sim, mas se me perguntar se imaginava terminar a carreira alcançando tudo o que consegui, ultrapassa, superou muito as minhas expectativas.

- Ficou preenchido?
- Sim. Acima de tudo feliz, preenchido, cumpri com mais até do que aquilo que esperava.

- Ficou alguma coisa por fazer?
- Ficam sempre coisas por fazer…

- Ser campeão pelo Sporting, por exemplo…
- Por portas e travessas acabei por participar no título de 2001/2002, fazia parte do plantel, mas como não tive qualquer minuto acabei por não fazer parte desse título. Mas acabo por ter um bocadinho de trabalho nesse título do Sporting.

- A decisão de acabar a carreira foi muito difícil?
- Foi muito difícil, demorou alguns meses. A minha dificuldade foi porque senti que ainda podia jogar mas não quero jogar duma forma não tanto profissional. Para isso jogo com os amigos. Psicologicamente é difícil deixar a rotina de ir treinar, estar com os colegas, a exigência, a pressão do treino, do jogo. Gosto muito de viver sob pressão, sob exigência e a falta dessa rotina é difícil de aceitar. É um processo que demora muito e há gente que precisa de ajuda para deixar esta rotina.

- Toda a gente sabe que é muito emocional. Chorou durante este processo?
- Chorei muitas vezes sozinho porque não sou nem mais nem menos do que nenhum atleta e dediquei-me mesmo muito ao futebol. Quem me conhece sabe que até num simples meiinho me entregava a 100 por cento, tal como num futvólei ou num treino de finalização.


- Perder era palavra que não entrava no seu dicionário…
- A palavra competição preenche-me, consome-me, faz parte da minha essência. E é um processo que foi difícil para mim.  

- O seu filho chorou quando voltou ao Sporting, em 2016?
- Sim. O meu filho é do Sporting; gosta mesmo muito do clube e no dia em que eu lhe liguei, quando recebi a oferta do Sporting e lhe comuniquei que ia aceitar, ele chorou, deu um salto de alegria porque sendo mesmo apaixonado pelo Sporting, sabendo que o pai ia voltar ao clube dele, sabendo da minha história no Sporting, o facto de regressar foi para ele muito importante e demonstrou-o.

- Ficou em choque quando, em 2002/2003,  saiu do Sporting para o Casa Pia, então na II Divisão B?
- Foi um pouco chocante porque nós, na nossa altura, os jogadores do Sporting, do Benfica do FC Porto, eram um pouco mimados no sentido em que tinham todas as condições: bons equipamentos, campos de treinos, bolas. Acabou por ser um pouco chocante porque tinha acabado de ser campeão pelo Sporting em 2002. O Sporting abdicou um pouco dos meus serviços, entendi. Só não entendi as formas mas hoje em dia não guardo qualquer rancor.

- Resolveu essa questão?
- Acabei por separar o que é o Sporting das pessoas que estão no Sporting. Para mim, o que importa é o Sporting, o FC Porto ou o SC Braga, os clubes que representei. Tinha empatia pelas pessoas porque não é o clube que me contrata mas as pessoas. Especificamente no caso do Sporting acabei por separar as coisas. Não guardei mágoa mas tristeza porque no total joguei 12, 13 anos no Sporting, são muitos anos, foi toda a minha juventude. Entrei com 10 anos e saí no início de 2002/2003, foram 12 anos; é meia vida. Acaba-se por sofrer um pouco por esse, não abandono, mas pela forma como te deixam ir. Acabou por ser um pouco doloroso para mim mas meti na cabeça que havia de voltar, prometi ao meu pai e voltei.

- Depois duma série de empréstimos, terminou a ligação ao Sporting. Como recebeu a notícia?
- Recebi a notícia do Sporting da pior forma possível. Não a recebi pelo clube mas pela imprensa. Estava de férias e não sabia. Tinha tido alguns contactos com equipas da I Liga: Académica, Belenenses... Tinha contactos para ser emprestado duma forma digna, comunicando e falando. O Sporting não comunicou, falou com o Chaves. Tinha mais um ano de contrato com o Sporting mas os dirigentes do clube falaram com o Chaves, organizaram tudo com este emblema; tentava falar com eles porque gostava de ir, por exemplo, para o Belenenses, para a Académica, para a I Divisão. As pessoas do Sporting fecharam as portas a todo o lado até que li: ‘Beto vai ser emprestado ao GD Chaves’. E reagi: ‘ai é, vou para Chaves?’ Não tive outro remédio, fui de bom grado, adorei o clube, a cidade. Não foi a melhor experiência profissional; não sei se não houve ali um estigma em relação ao Beto porque vinha emprestado do Sporting e teria de  jogar. Na altura era um clube um pouco familiar, as pessoas ligavam às relações de amizade, esqueciam um pouco a parte profissional. Tenho uma relação de amizade com o sr. Francisco [Carvalho], é um amigo para toda a vida. Mas foi assim que soube, através da imprensa. Joguei pouco em Chaves até que fui parar ao Marco.

- Tem alguma história curiosa no Marco com o histórico presidente da Câmara do Marco, Avelino Ferreira Torres?
- Lembro-me de numa cafetaria. O presidente na altura não era o Avelino, mas estava no Marco e conheci-o; ele na altura ainda achava que era presidente do FC Marco e num lanche num café disse-me que eu não estava longe de ir para um clube grande. Ele dizia que estava muito feliz por ser o Marco a mostrar-me ao mercado do futebol porque ainda ia ser guarda-redes de equipa grande. Chamemos-lhe louco ou não, a verdade é que o pensamento dele estava certo e tinha razão.

- Quando voltou a um grande, no caso ao FC Porto, em 2009, sentiu que estava vingado?
- Vingança é uma palavra demasiado forte. Não olho para isso como uma vingança mas como uma vitória da minha parte. Tinha de provar às pessoas que por mim ia lá chegar e que se tinham enganado a meu respeito. Mas quis dar um golpe na mesa e dizer: ‘ninguém acreditou mas eu cheguei porque houve alguém que conseguiu ver coisas que vocês não conseguiram ver’. Foi uma vitória muito pessoal e por isso é que dou tanto valor à minha carreira. Vali-me muito por mim mesmo.

- Trabalhou com sentimento de revolta?
- Não, trabalhei sempre com sentimento de conquista, sempre de ambição, nunca de revolta.

- Não ficou amargurado?
- Posso ter ficado amargurado com a forma como saí de um ou de outro clube. Posso ser uma pessoa com um feitio complicado porque era extremamente competitivo mas ninguém me pode apontar o dedo por não ser profissional. Sempre fui muito profissional e não aceitava que não olhassem para mim, pelo menos, como um bom profissional.

- No futebol, onde é que foi mais feliz?
- Passei em muito sítio e por muitas fases. Fui muito feliz no primeiro ano de Leixões, quando 20 anos depois colocámos o clube na I Divisão; fui muito feliz no FC Porto porque ganhei seis ou sete títulos; fui muito feliz no regresso ao Sporting em 2017; fui muito, muito feliz no Sevilha porque fui muito bem tratado. Costumo dizer que somos felizes onde temos sucesso e somos bem tratados. Fui bem tratado no primeiro ano no Leixões, na primeira passagem; fui muito bem tratado no FC Porto; fui muito bem tratado em Sevilha; fui maravilhosamente bem tratado na Roménia, na Turquia. Portanto, fui feliz em quase todos os clubes porque tive sucesso em quase todos e fui muito bem tratado. Esse é o segredo para se ser feliz seja a jogar futebol, seja a entrevistar, seja a servir às mesas. Se és bem tratado, se fazes as coisas bem, tens tudo para ser feliz e fui feliz em muitos sítios.

- Qual a melhor experiência?
- Sevilha pode ter sido a melhor experiência a nível profissional porque são três ligas Europa seguidas. Logo aí associa-se o sucesso à felicidade e continuo a ser muito reconhecido em Sevilha. O sítio onde me senti mais idolatrado foi na Turquia. Não sabia que havia essa idolatria.

- Pior experiência?
- Tenho duas más experiências. Uma pela forma como saí do Sporting e outra na segunda passagem pelo Leixões, em 2020. Decidi duma maneira emocional, regressei ao Leixões para agradecer ao clube e estar perto do meu filho. Muita gente não entendeu e eu entendo que as pessoas não entendam porque estava perfeitamente bem para jogar noutros níveis. Mas achei bem emocionalmente, hoje digo que foi uma má decisão porque não merecia o que as pessoas me fizeram, pois fiz muito pelo Leixões e as pessoas sem saberem o que realmente aconteceu dentro do clube criticaram a minha saída antecipada para o Farense. Mas tive mesmo de sair para o Farense porque me fez uma belíssima oferta e um belíssimo projeto através do Jorge Costa e do presidente para tentar ajudar o Farense a salvar-se na primeira divisão. Mas saí do Leixões duma forma intempestiva porque aquilo que as pessoas me fizeram não foi correto.

- Tem alguma história curiosa da Roménia?
- O que não falta são histórias curiosas da Roménia, com sete portugueses e equipa técnica portuguesa no Cluj, mas aquilo que vou realçar da Roménia foi a forma como nós, em duas semanas, criámos ali uma pequena família/comunidade que nos ajudou superar o frio, o idioma, as diferenças culturais, apesar de eles serem um pouco latinos mas é um latino muito mais frio e diferente. Éramos muitos portugueses e acabámos por nos unir muito e aí realmente vi que o estrangeiro quando está fora dá valor ao ser emigrante e ter alguém em quem se apoiar.

- Como é viver na Turquia?
- É maravilhoso.

- Mas a terra treme um bocado…
- Vivi três anos no sul da Turquia, naquela que para mim é a melhor cidade do país, Izmir, é uma cidade lindíssima, supereuropeia, muito perto da Grécia com um clima muito parecido ao nosso. Vivia maravilhosamente bem naquela cidade. Nunca tive grandes episódios, senti só um pequeno abanão na cidade quando estávamos numa clínica dentária. Estava eu e a minha esposa no dentista, aquilo abanou um pouco mas não tive mais episódios. Infelizmente, a Turquia tem sido muito castigada e fustigada por  sismos mas enquanto lá estive, felizmente, não houve grandes episódios.

- E viver na Finlândia, como foi?
- É primeiro mundista, ultra vanguardista. É  um exemplo mas só aguentei seis meses porque sou muito emocional, sou latino, gosto das pessoas e do contacto e eles não. São um pouco mais distantes, frios, é difícil de invadir aquele metro quadrado, o abraço é um pouco mais complicado mas a nível de civismo, de educação, cultura é verdade que são primeiro mundo e aprendi muita coisa na Finlândia.