Verdades de La Palice

OPINIÃO06.05.202004:00

OPORTUNAS e certeiras as reflexões - e os avisos - de Fernando Gomes no extenso artigo de opinião que a generalidade da Imprensa publicou na segunda-feira. Não é que tenha dito alguma coisa nova ou de alguma forma surpreendente. No fundo, aquilo que ele disse é do mais elementar bom senso: o futebol português assim como está não é viável: precisa de mudar de vida e de hábitos para ter alguma hipótese de continuar a ser competitivo no contexto europeu. O presidente da FPF escolheu um tempo difícil como este do Covid-19 («o futuro do futebol não está garantido. As pessoas podem viver sem ele», sublinhou ele) para enunciar algumas ideias fortes e sugerir pistas, quase todas apontando expressa ou subliminarmente para a mudança dos quadros competitivos (temos de construir provas rentáveis, relevantes e viáveis; plantéis mais curtos; maior aposta nas equipas B e de sub-23); redução do número de jogadores profissionais («o futebol português, com a dimensão que o país tem, é capaz de garantir cerca de dois mil empregos de qualidade?»); e a alteração do modelo de negócio (mais igualdade na distribuição de receitas; aposta clara na venda dos direitos televisivos para outros países; grandes não podem depender tanto dos dinheiros da UEFA!). Tudo o que Fernando Gomes disse é facilmente apreensível por um adolescente com a cabeça mais ou memos arrumada. É um discurso racional, lógico e sensato. Que aponta caminhos viáveis para a regeneração que urge fazer no quadro competitivo - e comportamental, acrescentamos nós - do futebol português. A questão é que andamos todos a reconhecer isto há tantos, tantos anos, que soa quase ridículo elogiar um texto onde se enunciam basicamente umas quantas verdades de La Palice.  

Houve pelo menos um aspeto em que a mensagem de Fernando Gomes não foi contundente como podia ter sido. A questão de um certo dirigismo de práticas obscuras que compromete o bom nome e a imagem externa do futebol português. Este sim, é o cancro nunca extirpado do futebol doméstico: o dirigismo do vale tudo, que subverte a verdade desportiva e não poucas vezes atenta contra o direito de todos os competidores a uma competição séria, credível e sem mácula - aquilo que no futebol inglês e alemão, só para dar dois exemplos, são pressupostos absolutamente sagrados e cuja violação suscita pronta e forte censura social. Fernando Gomes anda no futebol português há tempo suficiente para saber que este é o maior de todos os cancros, aquilo que verdadeiramente mina a credibilidade da competição. São as tais práticas há muito enraizadas e [inaceitavelmente, a meu ver] toleradas por quem tem o dever de as denunciar e combater. São as práticas e as pessoas que as praticam. E são os poderes, quantas vezes tentaculares, quantas vezes não escrutinados, das pessoas que as praticam. Fernando Gomes limitou-se a dizer sobre o lado obscuro do futebol doméstico que «os nossos clubes têm de aceitar que as regras precisam de ser duras, apertadas e para cumprir.» «Só assim poderemos terminar este ciclo de violência física e verbal que nada tem a ver com o futebol». Há quanto tempo dura este ciclo, senhor presidente? E há quanto tempo toleramos, assobiando para o lado e fingindo não ver, não saber… os mentores dessa violência física e verbal?  

 A finalizar, e mudando de assunto: estou completamente de acordo com o que o meu amigo Francisco José Viegas escreveu na sua coluna no  CM sobre a decisão também política que viabiliza o regresso do campeonato: «(…) só isso explica que, para auxiliar uma indústria tão poderosa e tão de pés de barro, para não mencionar as suspeitas de práticas criminais, o governo tenha decidido que um desporto de multidões se passe a praticar em silêncio a fim de desbloquear receitas de transmissões televisivas». Isso e outras coisas. O futebol é um poderoso dissuasor de inquietações e angústias sociais. E vai haver muitas nos tempos mais próximos. O futebol distrai, entretêm, mobiliza e faz esquecer agruras individuais e coletivas. Funciona como um bálsamo. Nós, povos do sul da Europa, onde a paixão é mais fervente, sanguínea e irracional, seremos os primeiros a reconhecer isso. Podemos viver sem futebol, é um facto. Como se tem visto e como Fernando Gomes fez questão de sublinhar. Mas é muito mais fácil para um cidadão alemão dizer isso e depois encolher os ombros. Ele sabe que as coisas realmente importantes não lhe vão faltar porque estão, à partida, garantidas. 

Os alertas de Simões e Rui Costa 

BENFICA europeu - ou inexistência dele. Tenho referido várias vezes este assunto (para mim, o grande calcanhar de Aquiles desportivo do vieirismo) e sei que por vezes desagrado os meus amigos benfiquistas - tenho muitos - com aquilo que escrevo e com os números que publico. Mas factos são factos e contra eles é difícil argumentar. O Benfica europeu de hoje é uma caricatura do Benfica que foi, entre 1960 e meados dos anos oitenta, uma das grandes potências futebolísticas da Taça dos Campeões, sempre a rainha das competições europeias. Hoje, as águias não pesam rigorosamente nada na Champions, que é a competição onde se percebe quem é quem no contexto internacional. Isso mesmo reconheceram na última semana duas figuras gradas do benfiquismo, o campeão europeu António Simões («este Benfica é indiscutivelmente curto, não tem qualidade para competir com os verdadeiros candidatos [na Champions], não tem qualquer hipótese. É preciso trazer jogadores para jogar e não para serem comprados por dez e vendidos por 20. Assim a promessa [de um Benfica europeu] não poderá ser realizada», disse ele ao O Jogo); já Rui Costa, em declarações à BTV (por ocasião do 58.º aniversário do célebre 5-3 ao Real Madrid em Amesterdão) reconheceu que «o Benfica tem de recuperar rapidamente a condição de grande clube de top europeu, após três campanhas consecutivas falhadas na Liga dos Campeões». Eu ainda vi e acompanhei profissionalmente um belo Benfica europeu nos anos oitenta (uma final na Taça UEFA e duas na Taça dos Campeões) antes da perda drástica de completividade nas décadas seguintes, maquilhadas nos anos de Jorge Jesus por duas finais seguidas na Liga Europa. Ao fim de tantos anos na presidência, Luís F. Vieira parece ainda não ter percebido que enquanto estiver confinado a uma dimensão unicamente caseira, o Benfica não conseguirá ser visto pelos parceiros europeus como o peso pesado que foi há mais de 50 anos. E como não se pode viver eternamente de glórias longínquas…