Unidos até ao fim

OPINIÃO08.09.202004:00

O Benfica defrontou  o Rennes para encerrar os jogos de preparação e, no final, Jorge Jesus teve uma declaração  curiosa: «Passados vários anos regressei e vi um Benfica diferente. Um clube que melhorou muito a nível de instalações e estruturas de futebol, como o Estádio da Luz ou o centro de treinos no Seixal. Neste momento, tem instalações de top mundial, só precisa de jogadores de top mundial.»

Sem que alguém o questionasse sobre o assunto, Jorge Jesus, por vontade própria, portanto, confessou a sua admiração pelo empenho que jamais o Benfica deixou de evidenciar ao nível da qualidade das suas instalações, entre o ano da sua saída (2015) e o do seu regresso (2020), o que traduz também uma manifestação de apreço e de reconhecimento pelo esforço de valorização permanente que norteia o  presidente que nele voltou a apostar, depois se ter mudado para Alvalade e viajado pela Arábia e pelo Brasil.

 Sem se dar conta, porém, até pelo ar sereno e divertido, Jesus tocou num ponto que fez títulos nos jornais e teve um alcance mais amplo e importante do que a simples reprodução de uma frase engraçada para animar conversas de café.

Segundo Jesus, o Benfica «só precisa» de jogadores de top mundial o que, anunciado a frio, pode fazer emergir a ideia de se estar a  lamentar da tropa inútil que lhe deram para comandar quando me parece que apenas quis debitar  uma piada inócua imediatamente a seguir a um teste positivo diante do Rennes, terceiro classificado da Liga francesa. Piada inócua, por não ter  qualquer intenção menos clara a ela colada, mas que acertou na questão central em termos de política de robustecimento do futebol profissional do Benfica e de recuperação do bilhete de passageiro frequente nos Campeões Europeus que lhe foi retirado na sequência de muitos anos de gestões apáticas ou catastróficas.  

Jesus não quis ser deselegante para os jogadores com quem trabalha. Saiu-lhe, espontânea, a mensagem, como definição de uma nova rota, mais exigente e obrigatoriamente a reclamar  artistas mais capazes: não sendo os melhores do mundo, pede-se-lhes, no entanto,  que não se intimidem diante deles e tenham a ambição de ser como eles.

O Benfica, enquanto emblema de dimensão supranacional, estará, finalmente, em condições de corrigir o seu trajeto, partindo de uma base segura, que já existe, de quase nível mundial. Construído o esqueleto da equipa, a área de formação desempenhará um papel mais relevante e mais lucrativo, faltando apenas, como  escrevi há duas semanas, que os miúdos sejam olhados como fontes de riqueza,  tantos são os agradáveis exemplos, e não como empecilhos. A Luís Filipe Vieira falta encontrar quem o ajude a articular o que o Seixal produz de valioso com a estrutura profissional, fixando  e publicitando os talentos que há dentro de casa  em vez de comprar pior e caro.

Vieira chama-lhe novo ciclo e elegeu Jesus para seu treinador. Se é para a águia voar mais alto e chegar mais longe o caminho é por aqui. É mil vezes preferível  gastar  numa  base de sustentação experiente e de classe superior, com seis/sete  jogadores,  espécie de  rampa de lançamento para o Benfica do futuro, que irá sendo enriquecida com gente nova e virtuosa, porque uma coisa é em cada época fortalecer uma, duas, ou três posições, outra, na inexistência de um ciclo programado, ao contrário das grande equipas, é começar de novo todos os anos. Dou um exemplo: entre as finais dos Campeões Europeus de 60/61, que ganhou (3-2, ao Barcelona), e a de 64/65, que perdeu (0-1, frente ao Inter), apesar dos cinco anos de distância, da presença em quatro finais  de top mundial nesse período e de três treinadores a orientá-lo, o Benfica repetiu nas duas formações titulares sete elementos, a tal base a que me refiro: Costa Pereira, Germano, Cruz, Neto, Cavém, Coluna e José Augusto. O que mudou em cinco anos? A camisola 9 passou de Águas para Torres e, no resto, de significativo, entraram dois senhores reforços: Eusébio e Simões. Por isso, o Benfica dominou na Europa durante a década de sessenta.

É esta lógica evolutiva num ambiente de estabilidade que Vieira quer pôr em prática. Os seus miúdos permitiram-lhe o respaldo financeiro que hoje apresenta e quem o acusa  apenas o faz movido pela inveja, sobretudo, agora, com tanta gente a esgadanhar-se para ver se  lhe tira o lugar.

Vieira escolheu Jesus para assumir a  retoma europeia  e este, estando diferente, como me assegura quem o conhece bem, vai entender que não pode olhar para uma prateleira de brinquedos e querer todos.  Escolhe  os melhores  e chegado a casa não deve fazer birra porque, afinal, os que ficaram na prateleira eram mais bonitos. Não, tem de esperar por outra oportunidade para os adquirir, tal como no atual plantel encarnado, claramente suficiente forte para triunfar nas contendas internas e garantir a participação  na Liga dos Campeões, mas ainda em construção. O que falta acontecerá, naturalmente.

Vieira escolheu Jesus contra ventos e marés e  Jesus, que não quer reformar-se sem entrar, por mérito, no clube exclusivo da elite europeia, sabe que esse passaporte de excelência poderá o Benfica emiti-lo em seu nome.