Uma vitória do racismo
Como disse Ivan Almeida, e muito bem, o silêncio também é uma forma de racismo. Que se faça por isso mais barulho, até todos ouvirem
NÃO era preciso que um cretino tivesse insultado de forma racialmente discriminatória o atleta Ivan Almeida durante uma partida de basquetebol para podermos afirmar que Portugal é um país no qual o racismo possui raízes profundas e crenças fortes. Esta não é a minha opinião. É mesmo a dos milhares de portugueses inquiridos no estudo Racial Bias Around The World (Enviesamento Racial No Mundo), publicado em 2020, ou no European Social Survey (Inquérito Social Europeu), realizado em 2017. Os dois estudos chegam à mesma conclusão: Portugal é um dos países europeus com mais fortes crenças racistas, isto é, em que de forma mais pronunciada os cidadãos distinguem entre etnias.
Tome-se como exemplo os resultados do European Social Survey, que mediram dois tipos de racismo: biológico e cultural. O racismo biológico foi avaliado através da seguinte questão: «Acredita que há raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes do que outros?» Mais de metade dos inquiridos portugueses respondeu sim, colocando o país no primeiro lugar deste embaraçoso ranking.
E também não era preciso que um racista tivesse insultado Ivan Almeida a meio de uma partida de basquetebol para podermos afirmar que este problema continua a ser tratado de forma indiferente e/ou inconsequente por quem deveria fazer dos racistas um exemplo. Felizmente, muitos protagonistas do desporto português têm sido exemplares a mostrar que o tema não lhes interessa, ou porque não passa de uma efabulação trazida à baila por meia dúzia de ativistas, ou porque a culpa é na verdade das ditas vítimas de racismo, que se puseram a jeito com alguma coisa que fizeram, nem que seja simplesmente o facto de existirem.
Ainda assim, e mesmo sabendo da irresponsabilidade ou ignorância com que estas situações foram já tantas vezes tratadas no desporto português, mesmo estando habituado à habitual palmada na mão do racista prevaricador, ainda assim, causa especial perplexidade, corrijo, causa especial repulsa que a Federação Portuguesa de Basquetebol nada tenha concluído em relação aos insultos raciais dirigidos a Ivan Almeida, mas decida atribuir uma suspensão de dois jogos ao atleta porque este reagiu à frase «macaco, volta para a tua terra», se bem percebi, com um comportamento considerado atentatório da integridade física de outros intervenientes no jogo. Na verdade, limitou-se a erguer a bandeira de Cabo Verde para mostrar orgulhosamente a sua terra.
Esta é apenas uma das várias tipologias da discriminação em Portugal: neste caso, o racismo é virado contra a vítima, a quem se pede mais decoro no momento em que é humilhado por causa da sua cor da pele ou etnia. Foi assim que muitos reagiram aos insultos racistas de que Marega foi vítima em Guimarães. O jogador é que terá provocado os adeptos, ele que até já era conhecido por ser conflituoso. Bem vistas as coisas, a culpa foi do Marega por não ter sabido manter a calma quando ouviu os adeptos da equipa adversária imitar um macaco. Felizmente, a justiça imperou. Os adeptos em questão pagaram mil euros cada um e ficaram impedidos de entrar em recintos desportivos durante um ano. Já o Vitória de Guimarães foi obrigado a realizar três jogos à porta fechada, uma suspensão cumprida exemplarmente durante a pandemia, quando todos os estádios estavam vazios.
«Causa especial repulsa que a Federação Portuguesa de Basquetebol nada tenha concluído em relação aos insultos raciais a Ivan Almeida»
Se tantas vezes os episódios vergonhosos colocam o ónus na vítima, há muitas outras situações em que se procura atribuir o comportamento ao calor do momento, como se o racismo de alguém se manifestasse apenas numa situação de especial visceralidade ou descontrolo, e isso pudesse ser considerado uma atenuante. Talvez diga até, em sua defesa, que nem sequer é racista e até tem amigos de outras etnias. Voltamos ao início. A origem de cada um destes episódios, cujos nomes das vítimas poderiam encher um jornal inteiro, não está nessa particularidade que fez alguém perder as estribeiras e exibir o seu racismo. Está nas estruturas que tornam esse comportamento aceitável. Está no caminho que se fez até ali, está no país em que se viveu até àquele momento. E está, também, na recusa em admitir que esse país existe.
Existe um grau de liberdade, conferido pela sociedade portuguesa, que permite ao racista, num recinto desportivo, imitar um macaco ou dizer a um negro para voltar para o seu país e não se sentir, naquele instante, o mais absoluto traste. Não decorre das leis, mas das normas de convivência assimiladas e praticadas por cada cidadão. Se tiver sorte, pode ser que provoque alguns risos e a concordância de quem o rodeia na bancada. E, por muito que esta análise pareça enquadrada no território da ofensa verbal, sei bem que o grau de liberdade de que goza o racista não se tem traduzido apenas em insultos. As consequências já foram, demasiadas vezes, bem mais devastadoras.
Que os adeptos de uma modalidade desportiva continuem a exibir estes comportamentos é infelizmente normal num país como Portugal. É algo que devemos esperar voltar a encontrar nas bancadas e, sempre que possível, algo que devemos combater e denunciar com os meios de que temos ao dispor, que devem passar pela ampla divulgação dessas práticas e pela queixa-crime. A boa notícia é que a mesma sociedade que hoje normaliza e atenua estes comportamentos irá inevitavelmente evoluir até ao dia em que o ostracismo esteja reservado para os racistas e não para as vítimas de racismo. A má notícia é que ainda estamos longe desse dia.
O que aconteceu com Ivan Almeida deveria requerer níveis mínimos de empatia para ser compreendido como a reação natural, ainda assim equilibrada, de alguém cuja dignidade enquanto ser humano foi posta em causa, suspeito eu, pela enésima vez. Que uma entidade como a Federação Portuguesa de Basquetebol ignore o contexto e escolha o lado errado da história, é uma vergonha absoluta para o desporto, e uma vitória da discriminação e dos seus mais tímidos ou descarados proponentes. Que sirva de exemplo. Como disse Ivan Almeida, e muito bem, o silêncio também é uma forma de racismo. Que se faça por isso mais barulho, até todos ouvirem.