Uma visão cristã do desporto
A Santa Sé, através do seu Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida criado pelo Papa Francisco em 2016, tornou público no passado dia 1 de Junho um documento intitulado ‘Dar o melhor de si: uma perspectiva católica do desporto e da pessoa humana’.
Trata-se de uma reflexão profunda e substantiva, numa abordagem que incita a uma verdadeira pastoral do desporto, que, além do mais, é inédita na Igreja Católica que, justa ou injustamente, foi sempre vista como hostil ou dando pouca importância humana, social e ética ao fenómeno universal e global do desporto.
Reservo esta coluna de hoje para, ainda que muito parcelar e resumidamente, registar alguns elementos que considero mais interessantes e reflexivos. No meio do actualismo insaciável e do primado dos epifenómenos que satisfazem a gula desportiva mediática de quem noticia e de quem consome as notícias, sei que estas temáticas não entusiasmarão a maioria dos leitores. Aliás, a ausência de referências e o silêncio dos meios audiovisuais quanto ao documento são elucidativos do desprezo de quase tudo o que vem da Igreja, excepto se for algo criticamente excitante. Mesmo assim, não mudei de ideias e registo este documento como um ponto marcante na essência antropológica do desporto e um lugar de encontro «onde pessoas de todos os níveis e condições sociais se unem para atingir um objectivo comum» nas palavras do Papa.
O documento avisa que não se trata de falar de uma visão de desporto cristão, mas antes de uma visão cristã do desporto. Este, enquanto actividade física em movimento, individual ou colectiva, de carácter lúdico ou de competição, com sistema de regras e de códigos, deve ser valorizado como um «ginásio de vida», no qual as virtudes da temperança, da humildade, da coragem, da paciência podem ser desenvolvidas.
É chamada a atenção para o «sistema de desporto», que visto do seu lado exterior e sujeito à multiplicidade interpretativa e apreciativa, o torna fascinante e popular por toda a parte e em todas as expressões, mas que, também e ao mesmo tempo, «o expõe a formas de instrumentalização funcional e ideológica» que não lhe são originárias.
A parte do texto que mais me chamou a atenção foi a que discorre sobre um conjunto de elementos substantivos para um desporto de corpo, alma e espírito: liberdade, criatividade, igualdade de oportunidades, alegria, fair-play, coragem, harmonia, solidariedade.
Quanto ao fair-play reafirma-se que deve ser sempre visto como «uma oportunidade de educação para toda a sociedade», uma polinização do exemplo de virtudes comportamentais. «Uma coisa é respeitarem-se as regras do jogo evitando ser-se sancionado pelo árbitro ou desqualificado por uma violação regulamentar; outra coisa é respeitar o adversário e a sua liberdade seja qual for o enquadramento regulamentar».
Está muito difundida a mentalidade individualista e egocêntrica, pela qual interesses individuais parecem prevalecer sobre o espírito de equipa. O documento adverte para essa situação e refere que «todos se revestem por si de um contributo único e específico que pode tornar mais forte o colectivo».
É enaltecida a alegria que se alcança praticando um desporto e emerge, muitas vezes, das dificuldades e dos desafios mais duros, não esquecendo que «há muita gente que pratica desporto apenas pelo prazer, pela oportunidade de relacionamento saudável, para aprender novas competências ou para se sentir parte de uma determinada comunidade».
O documento aborda, também, reais perigos de desestruturação da harmonia imanente ao desporto. E exemplifica com a excessiva comercialização de alguns desportos e a dependência de modelos científicos sem preocupações éticas, ou a promoção de modos desportivos nos quais o corpo é reduzido a um mero meio ou objecto para conquistar um determinado objectivo. O fascínio que cada vez mais suscita o desporto no mundo global, com eventos planetários que são vistos por milhões de pessoas e o «vencer a todo o custo» expõem-no a desvios de práticas e políticas incompatíveis com a dignidade da pessoa, quer no que se refere aos praticantes, quer a outros interessados em redor do desporto, como sejam os espectadores e adeptos. A reflexão aponta, por exemplo, a instrumentalização para veicular interesses políticos, mediáticos, de facção ou de formas espúrias de poder, nacionalismos e explorações financeiras condenáveis.
Quanto à igualdade que deve estar implícita no desporto, diz-se que, todavia, «não significa homogeneidade e conformidade, significando, antes, respeito pela diferença e pela diversidade da condição humana, designadamente quanto ao sexo, idade, proveniência cultural e social e tradição», não deixando de promover ou sustentar uma cultura de encontro, de paz e de inclusão.
O tema da solidariedade está desenvolvido com clareza, havendo um ponto mais específico que se refere à responsabilidade social dos atletas mais famosos e vitoriosos em actividades desportivas que «todos os fins de semana levam muita gente aos estádios e aos quais os meios de comunicação social dedicam amplo espaço».
Já na parte conclusiva, o texto chama a atenção para o que considera serem os quatro grandes e específicos desafios para o integral e são desenvolvimento desportivo, tendo em consideração a multiplicidade de agentes co-envolvidos no fenómeno desportivo (atletas, espectadores, media, gestores, empresários, políticos, etc.): a exploração e aviltamento do corpo, o doping, a corrupção na prática e gestão desportivas e nas apostas e comportamentos desviantes no seio dos espectadores e adeptos.
Quanto ao primeiro ponto, adverte-se para o perigo da «automatização» de atletas, sobretudo nas competições de alto nível desportivo, na obsessão de alcançar o sucesso, as medalhas, os recordes e ganhos pecuniários. Denunciam-se situações como as que «vêm tornando cada vez mais frequente práticas em que jovens são deixados nas mãos de treinadores e dirigentes unicamente interessados na especialização unidireccional de talento (…) com especializações precoces que abrem a porta, não raro, a infortúnios (…)», exemplificando com a ginástica de elite, onde há uma ditadura do protótipo de corpo ideal que exige brutais restrições alimentares e excessivas cargas de treino.
Sobre o doping físico e mecânico, que cada vez mais se disfarça de formas de desenvolvimento tecnológico ou descobertas no campo médico, é afirmado que é, tão-só, a ponta do iceberg de um fenómeno que está crescentemente a entrar nas profundezas do desporto. «Para o combater (…) não basta apelar à moral individual de cada atleta», mas também envolver os principais agentes que, tantas vezes, estão na base da tentação de a ele recorrer.
Ainda o Mundial
1 - O jogo da final trouxe-nos um campeão esperado, ainda que não excitante. A França venceu bem e a Croácia foi uma digna finalista. Aqui e agora, gostaria, tão-só, de registar momentos que tiveram tanto de belo, como de estranho. Refiro-me à entrega das medalhas e da Taça realizada sob copiosa chuva de Verão. Três presidentes a ela presidiram. Emmanuel Macron e a sua homóloga croata, Kolinda Grabar-Kitarovic, indiferentes à chuva que os encharcou, foram calorosos e com um assinalável sentimento de festa e fair-play, em particular a derrotada. A seu lado, o presidente russo, frio, calculista, enigmático, distante, com uma atitude que culminou numa incrível deselegância, ao não passar aos seus convidados o guarda-chuva que logo a organização lhe proporcionou. «Não havia necessidade», até porque este Mundial foi desportiva e civicamente exemplar.
2 - Na última semana da competição, a pressurosa FIFA anunciou que iria falar com as cadeias de televisão para que fossem diminuídas as imagens nas bancadas dos estádios, devido às elevadas queixas de sexismo que haviam surgido durante o Campeonato do Mundo (trinta, credo!). «Falámos de forma individual com todas as operadoras para que deixem de focar nas raparigas que podem ser consideradas atraentes. É trazer uma carga sexista desnecessária ao futebol», disse o responsável pelo ‘programa de diversidade’ (sic) da FIFA. Eis a obsessão de falso puritanismo que varre a correcção política sexual! Ridículo, no mínimo. Já agora - e pondo de lado, a cientificidade na definição de «raparigas atraentes» -por que razão a FIFA não faz de polícia de costumes no controlo de entradas das raparigas ou não define limites de vestuário (ou falta dele)?