Uma liderança em causa

OPINIÃO02.07.202004:00

O tempo é uma peneira. Dispersa o ruído, faz cair todas as coisas secundárias e deixa-nos o que realmente importa. Em cinco anos (de 2015 a 2020), Jorge Jesus passou de diabo a messias. Do treinador que furtou software quando foi empurrado para fora da Luz e assinou pelo Sporting ao único técnico capaz de salvar, novamente, o Benfica. É esta a leitura que qualquer um faz do que se passou na última semana e que mostrou, mais uma vez, Luís Filipe Vieira perdido no seu próprio labirinto, precursor do jesuísmo, adaptação moderna pintada a vermelho do sebastianismo já cantado por Camões.    


Compreende-se a perdição do líder das águias pelo atual treinador do Flamengo: em 17 anos de presidência, foi com ele que o Benfica mais se agigantou. Não em picos, mas num planalto. E, ao contrário do que a narrativa do regime e o discurso oficial apregoavam quando a ordem era para malhar no técnico natural da Amadora, é agora cristalino que, passados cinco anos, precisa muito mais Vieira de Jesus do que Jesus de Vieira, o que quer dizer muito sobre as capacidades e o futuro de cada um no seu ofício.


Parece claro, para muitos benfiquistas, que está menos em causa o valor de um treinador e mais em discussão o que é o Benfica como força desportiva. Fazer depender o sucesso ou insucesso de apenas um homem é um sinal de fraqueza de quem lidera, de quem não é, afinal, capaz de criar a tão afamada estrutura em que o treinador é uma peça importante mas não a parede mestra. Em 17 anos de presidência, os dois grandes ciclos de sucesso desportivo de Vieira tiveram como suporte duas personalidades muito fortes a seu lado: José Veiga (como dirigente) e Jorge Jesus (como treinador). Sempre que tal não aconteceu, ficaram mais expostas as fragilidades de um modelo de gestão.  


É redutor colocar todas as culpas em Bruno Lage pelos maus resultados e exibições. Se o treinador mostrou, em determinado momento de 2019/2020, que estava a ter dificuldades em fazer passar a mensagem aos jogadores, caberia à estrutura detetar os sinais e agir em conformidade. Sem os líderes de balneário da época passada (Luisão, Salvio, Jonas...) talvez se exigisse mais aptidão para gerir as chamadas dinâmicas de balneário. Daqueles gestos e decisões por vezes desconhecidos do grande público, porém tão ou mais importantes que uma contratação de €20 milhões. Recordo um exemplo no FC Porto em 2011/2012: em fevereiro, os dragões chamaram Paulinho Santos para a equipa técnica de Vítor Pereira, tomando o lugar de Rui Quinta no banco de suplentes, passando este a observar os jogos num local superior. Estava aqui em causa as dinâmicas. Coincidência ou não, os portistas partiram para um final de época histórico, culminando no famoso minuto Kelvin - lê-se agora que Luisão irá integrar a equipa técnica do Benfica na próxima época...  


A pergunta que agora muitos fazem é se estamos na iminência de uma mudança de ciclo no Benfica. Isso dependerá muito do que fizer Luís Filipe Vieira, da sorte que também o acompanhar (a mesma que fez Lage tornar-se de interino em definitivo enquanto Vieira procurava um sucessor para Rui Vitória, Jorge Jesus incluído) e de que ideias poderão surgir de outros candidatos às eleições. Dos já conhecidos mas fundamentalmente daqueles que ainda não se expuseram mas já se movimentam.


Vieira resistiu aos maus momentos no passado mas para isso contou sempre com um consenso generalizado em torno da sua figura, algo que parece estar mais longe nos dias que correm. E não será soltando esqueletos com 20 anos que conseguirá convencer quem duvida dele. Até Churchill perdeu as eleições no pós-guerra.

PS: O SC Braga estava anteontem a vencer por 2-0, mas aos 34’ Soares Dias roubou a bola, deu a Jorge Sousa, que na esquerda cruzou para Tiago Martins finalizar; aos 35’, num vólei de pé esquerdo, Manuel Mota fez o 2-2; aos 40’, Luís Godinho recebeu da esquerda e tocou atrasado para João Pinheiro faturar. Consta que, com Rúben Amorim, esta equipa teve dificuldades em furar as linhas dos minhotos. Não bascularam, triangularam nem controlaram a profundidade. Impotente, o treinador destes jogadores decidiu fazer  um comunicado, criticando os apanha-bolas.