Uma insustentável teia de suspeições

OPINIÃO27.03.201903:00

1 Depois de extraditado para Portugal, Rui Pinto lá ficou em prisão preventiva, conforme tanto desejavam o Ministério Público, a Polícia Judiciária e não só. Quase que me pareceu ouvir um imenso «Uff!» de alívio soltar-se de várias gargantas. Talvez assim, com Rui Pinto na cadeia e a fonte das suas incómodas notícias congelada, eles achem que o assunto fica morto - pelo menos o tempo suficiente para que se possa apagar pistas comprometedoras. Mas tudo isto é demasiado estranho para ser remetido a um conveniente silêncio, sob o manto de uma aparente justiça e sob a hipócrita invocação do «grave» crime da violação da correspondência privada. Não o farei, pela minha parte. Porque, como já aqui escrevi, bem mais grave do que violar a correspondência de quem tem crimes para ocultar é usar a justiça para os manter ocultos, abrigando-se sob o diáfano manto das virgens impolutas vítimas da violação da correspondência.
Como explicaram os seus advogados em comunicado, a prisão preventiva de Rui Pinto - a mais grave das medidas de coacção - é incompreensível, uma vez que o único crime que, ainda que remotamente, poderia justificá-la, o de tentativa de extorsão, ficara resolvido por acordo entre o suspeito e a Doyen. Mas, para além do facto de, salvo melhor opinião, não existir crime que justificasse a prisão preventiva, era necessário ainda que concorressem as restantes circunstâncias que a lei exige para que o juiz decida que só a prisão preventiva pode garantir a boa condução da investigação. Ora, a este respeito, a juíza de instrução invocou três circunstâncias: o perigo de fuga, a perturbação do processo e a continuação da actividade criminosa. Quanto à primeira, era fácil de resolver, mediante o simples confisco do passaporte e do CC, ou através da prisão domiciliária, com ou sem pulseira electrónica. Quanto à segunda, tudo depende da perspectiva que se tenha da actividade de Rui Pinto: para a justiça belga por exemplo, que, na véspera da sua extradição para Portugal, o ouviu voluntariamente durante oito horas, ele não só não perturba qualquer processo, como é um precioso colaborador para o apuramento dos tais crimes desvendados através dos mails por si revelados. Quanto à continuação da actividade criminosa, aí sim, a magistrada toca no ponto: precisamente o que se pretende é que Rui Pinto pare com a sua actividade. Mas se ela é criminosa ou não, é coisa que só um tribunal dirá em julgamento, sendo certo que para a justiça belga, francesa ou europeia o não é. Ao contrário, a juíza de instrução portuguesa decidiu já que sim, antecipando-se ao julgamento do tribunal. E, todavia, convém lembrar que um juiz de instrução, segundo a lei, é «um juiz das garantias» do arguido e que a sua posição deve ser equidistante entre a acusação e a defesa.
Para os leitores que veem em tudo isto nada mais que um Benfica-Porto e que não veem ou não querem ver a gravidade de tudo o que este processo levanta de estranheza, esclareço que, tanto quanto sei e o próprio disse, Rui Pinto também teria revelações a fazer sobre o meu clube, o FC Porto, designadamente em matéria de negócios menos claros em volta de jogadores. E eu estava e estou também muito interessado em conhecê-los. Penso, aliás, que ninguém pode ter dúvidas sérias que Rui Pinto tem em seu poder informações que, indo muito para além do pequeno mundo do nosso futebol, também poderiam trazer uma luz que iluminasse de vez as trevas do sub-mundo do nosso futebol. E sabem perfeitamente que a sua extradição e a sua prisão preventiva, sob pretextos jurídicos mais do que questionáveis, ridículos até, são uma descarada e indisfarçável tentativa de o silenciar. Por isso, quando vejo tantos que passam a vida a pregar a moralização do futebol português e que agora, perante uma oportunidade clara de se conseguir desbravar o pântano, escolhem tomar o partido dos que querem silenciar a testemunha, só posso dizer, com pena, que, pelo menos, fica tudo esclarecido.

2 Leio na edição de A BOLA de ontem o inenarrável diálogo e troca de vídeos entre o já célebre César Boaventura (aparentemente, uma espécie de Embaixador itinerante do Benfica) e um tal de Catão, presidente do S. Pedro da Cova. Um edificante diálogo que mete insultos, ameaças de morte mútuas, encomendas de «coças», acusações de corrupção envolvendo 100.000 e 200.000 euros a invocado mando do presidente do Benfica - enfim, a revelação de um inimaginável pântano, real ou ficcionado, mas com dois personagens que, eles sim, existem e, para desgraça nossa, podem estar num estádio perto de nós, onde vamos apenas para ver um jogo que nos apaixona.


Porém o dito César Boaventura reapareceu agora à superfície quando, sob juramento, Lionn, ex-jogador do Rio Ave, declarou em tribunal que ele o havia tentado comprar, e ao seu colega de equipe Marcelo, em nome do Benfica e no jogo Rio Ave-Benfica de 2016, que os encarnados venceram por 1-0. E logo depois, foi Cássio, guarda-redes dos vila-condenses nesse jogo, que contou a mesmíssima história ao Expresso, envolvendo César Boaventura. Ora, César Boaventura (e Paulo Gonçalves) já tinha estado envolvido em história exactamente igual, referente a um jogo Marítimo-Benfica (vitória do Benfica por 2-0), com jogadores do Marítimo a contarem à SIC tentativas de corrupção da sua parte. Tudo isto aconteceu em 2016 e Cássio contou ao Expresso que foi então ouvido pela PJ sobre este caso. 2016 - repito: 2016. Se não me engano, estamos em 2019. Pergunto: o que fez a PJ em três anos? Que andamento deu às investigações, se é que chegou a haver investigações? A PJ e o MP, tão diligentes a deitarem a mão a Rui Pinto, o que fizeram perante dois casos distintos de vários jogadores apontando para um mesmo agente suspeito de tentativa de corrupção ao serviço de um mesmo clube? E, já agora, que andamento foi dado ao caso dos 100.000 euros detectados a saírem da Benfica SAD e da Benfica Estádio a favor de duas empresas que, segundo um comunicado da própria PGR, serviram apenas para transformar o dinheiro em cash? Já começaram as investigações, já interrogaram alguém para perceberem para que queria o Benfica o dinheiro em cash?

Tudo isto, notem, nem sequer tem nada a  ver com os mails revelados por Rui Pinto. Surgiu de outras formas, por outras fontes, coincidentemente. Mas já são coincidências a mais. Nada, é claro, que afaste a sagrada presunção de inocência - de quem, aliás, não foi sequer acusado de nada. Mas o ponto está aí também. O Benfica não foi acusado de nada com base nestes factos ou suspeitas levantadas; mas será que foi ao menos investigado? É que uma coisa é o Benfica dizer que não tem nada a ver com estes assuntos, que não sabe de nada, que é alheio a tudo o que terão andado a fazer Paulo Gonçalves e César Boaventura. Outra coisa é as autoridades darem-se por satisfeitas com essa declaração. Falo das autoridades judiciais, mas, como é óbvio, não são as únicas interpeladas. Ou a Liga, que organiza os campeonatos, e a Federação, que zela pela sua disciplina, têm o direito de fingir que  o assunto não lhes diz respeito, quando ouvem jogadores a dizerem que determinado clube os tentou comprar para que perdessem um jogo?