Uma entrevista das arábias
Não vejo porque tenha de sentir pudor por achar uma irreprimível vontade de elogio na grande entrevista a Jorge Jesus que A BOLA, ontem, publicou. Digo-o abertamente, sem tiques de arrogância, mas com a consciência plena de que estamos perante um caso raro do melhor jornalismo que hoje ainda é possível fazer-se em Portugal, fruto de uma feliz conjugação entre um jornalista de enorme qualidade profissional (André Pipa) e um entrevistado (Jorge Jesus) que tendo chegado com esforço financeiro familiar apenas ao sexto ano de escolaridade, tal como nos confessa, é hoje, não apenas um mestre da tática no futebol, mas um mestre da vida, um daqueles que a souberam subir a pulso.
Devo reconhecer que Jorge Jesus é um caso raro de intuição e de inteligência natural, que será aquela inteligência que se desenvolve a partir do conhecimento da experiência da vida e não dos saberes que os livros nos dão e que muitos (quase todos) apenas repetem numa indigência de dinâmica de pensamento e de ausência de risco em relação ao novo.
Estamos mal habituados, num país onde os doutores (os que são e os que não são) ganham, desde logo, o direito a serem considerados inteligentes por um estatuto social que apenas admira quem se repete nos hábitos, nas modas, nos vícios, nos comportamentos.
Ora, Jesus não se repete. Jesus reinventa-se e aproveita cada momento para aprender mais de si, dos outros e do mundo. Daí que a genuinidade do seu peculiar saber tenha aquela mesma marca única que Saramago encontrava no seu avô analfabeto e que entendeu homenagear no discurso de agradecimento da entrega do Prémio Nobel, em Estocolmo, quando, para espanto das elites, o escritor disse que, apesar de analfabeto, o seu avô tinha sido o homem mais inteligente que encontrara na vida. Jesus não é analfabeto, mas como todos sabemos não é um reconhecido primor de usuário rigoroso da língua portuguesa. E, no entanto, há, em toda a entrevista, uma prova exuberante da sua inteligência, da sua capacidade para entender e usar o novo poder da comunicação.
Manuel Sérgio, o agora estudado, elogiado e reconhecido Professor que também subiu a corda da vida a pulso, terá sido um dos homens que mais cedo descobriu em Jorge Jesus essa sua inteligência quase naturalista, ajudando-o a despertar para a curiosidade sobre a complexidade do Homem inteiro, uno e indivisível.
Hoje, também Jorge Jesus repete, mas compreendendo, que «não há dribles, há homens que driblam» e que o Homem é muito mais interessante pelo lado das diferenças do que pelo lado de uma civilização que o iguala nos gostos, nos gestos, nos pensamentos...ou na ausência deles.
Na entrevista que Jorge Jesus concedeu ao André Pipa está lá tudo. A visão do mundo, a consciência e o interesse pela diferença das culturas, o reconhecimento de outros, o sentimento de Pátria, a identidade, a legítima vaidade da obra construída, a natureza sã da sua verdade, o comprometimento com uma ideia de valor do Homem português no mundo. E estando lá tudo, está também o futebol que não transparece como um adjacente da vida, porque, afinal, desse tudo também faz parte.
Dez páginas do jornal que se leem num fôlego (quem não leu aconselho ainda a ler, nem que seja recorrendo às edições digitais de A BOLA) e quem não viu n’ A BOLA TV, aconselho a ver. No seu conjunto, uma peça rara no pobre e mitigado jornalismo de hoje. Uma brisa fresca no deserto. Um sinal de esperança no futuro, um exemplo de incentivo à ideia, por vezes esquecida, de que, como diz o António José Saraiva, o jornalismo tem de surpreender, tem de emocionar, tem de fazer pensar.