Uma conversa portuguesa no Vaticano
Um encontro especial entre o cardeal Tolentino de Mendonça e José Mourinho a propósito do pensamento de Manuel Sérgio sobre o desporto
A ideia terá surgido a D. Tolentino de Mendonça nas suas habituais conversas telefónicas com Manuel Sérgio, filósofo e pensador, que se tem ocupado, ao longo de uma vida, da relação íntima e fascinante do Homem com o Desporto. Têm ambos sincera admiração por José Mourinho. Sérgio, porque foi seu professor, talvez o primeiro a incentivá-lo no desejo de seguir o treino de futebol de alto rendimento, e com quem foi mantendo, ao longo dos anos, uma relação de amizade; o cardeal Tolentino, que desempenha, hoje, a importante função de arquivista e bibliotecário do Vaticano, porque gosta de futebol, sempre acompanhou a carreira de sucesso de Mourinho e lhe pareceu manifestamente interessante ter com o treinador português da Roma (afinal, seu vizinho) uma das suas habituais conversas Faccia a faccia que pública regularmente no Osservatore Romano.
O resultado do encontro é fasccinante. Tem, em fundo, o pensamento novo e transformador de Manuel Sérgio, muitas vezes silenciado pela ortodoxia da educação física que Sérgio rejeita no seu corte epistemológico, colocando o desporto na área das ciências humanas. Tolentino é um seguidor da ideia anticartesiana de Sérgio e, acima de tudo, do seu conceito de transcendência, que vai além do conceito, mais usado na área desportiva, de superação. Mourinho é um discípulo assumido do seu antigo professor e que reconhece, pela prática, uma razão essencial na ideia de que, no futebol, «não há chutos, há homens que chutam» e que por isso se torna essencial pensar o homem antes de pensar o jogador.
«Portugal é um país curioso», diz D. Tolentino, logo no início da conversa publicada, «porque um dos nossos pensadores mais originais é um pensador no campo do desporto, da motricidade humana, e escreve regularmente, não numa revista de filosofia, mas num jornal desportivo: A BOLA».
Mourinho lembra-se de que nas suas primeiras aulas como estudante universitário teve o professor Manuel Sérgio na disciplina de A filosofia da atividade corporal. Logo no início, o mestre perguntou-lhe o que queria fazer e Mourinho respondeu, com total convicção, que queria ser treinador de futebol de alto rendimento. Foi então que Sérgio lhe deixou um conselho que Mourinho diz jamais ter esquecido: «Lembra-te que quem só sabe de futebol, nem de futebol sabe.» Agora, o treinador revela esse episódio já distante no tempo, mas que lhe serviu de base para o entendimento de que «o futebol é muito mais do que a técnica, a tática, o físico, o aspeto mental». Por isso Mourinho revela que sobretudo antes dos jogos e competições que obrigam a maior concentração e que comportam altos níveis de pressão, fala muito com os seus jogadores sobre a importância do que designa por «sinal+», algo que todos devem conseguir dar para além do que deles se espera, do que aprenderam nos treinos ou do seu natural talento. Será, isso, a transcendência de que fala Manuel Sérgio. Uma palavra que tanto Mourinho como D. Tolentino também partilham num sentido de religiosidade. Tal como ambos partilham o sentimento de espiritualidade. Mourinho explica que é esse o sentimento que tanto ele como os seus jogadores conhecem, quando a equipa desce do autocarro, ouve o apoio dos adeptos, faz o caminho até ao balneário e, depois, até ao campo: «Todos sentem essa espiritualidade, apesar das suas diferentes religiões.»
A conversa é longa e especial. Dá-nos a conhecer o lado mais humano de José Mourinho que também confessa que, para ele, «o futebol continua a ser muito importante, mas não a parte mais importante da minha vida».
DENTRO DA ÁREA
O BELO TRABALHO DE CARVALHAL
Vale a pena olhar para o SC Braga, com olhos de ver. Primeiro, porque há, muito claramente, uma renovadora política desportiva, apoiada num trabalho estruturante da formação, que inclui um forte investimento em infraestruturas; depois, porque o trabalho desenvolvido pelo Carlos Carvalhal tem sido notável. O SC Braga tem uma equipa com uma média de idades muito baixa, joga com uma entrega total e com um verdadeiro prazer em realizar espetáculo. É a equipa mais britânica do futebol nacional. Especialmente, nas virtudes.
FORA DA ÁREA
COMO SE FOSSEM SOBEJOS HUMANOS
A guerra e todos os seus crimes hediondos tornou-se banal. À hora em que jantamos, entre uma garfada de bacalhau à Brás e um gole de tinto, olhamos, cada vez com mais naturalidade, para um braço mal enterrado, vendo-se, na extremidade, a trágica ironia de umas unhas vermelhas bem tratadas. A mulher está morta como mortos estão todos os que a rodeiam por ali espalhados pelo chão como se fossem sobejos humanos do mundo. Há um terrível despudor na procura da imagem da morte que nos faça interromper o jantar.