Um tiro no ar e outro no pé
Meu caro Bruno Lage: sempre aprendi com alguns mestres que jornalista nunca é notícia, mas uma vez que decidiu pôr a minha profissão no centro da discussão permita-me um ligeiro desvio para lhe contar uma breve história pessoal. Um dos meus primeiros serviços fora da redação, ainda estagiário verdinho acompanhando um jornalista sénior (era assim que se formavam jornalistas à data), foi no velho Estádio da Luz. E a estreia não podia ter sido melhor: ao dirigir-me para a sala de imprensa, eu e muitos camaradas fomos cuspidos por adeptos que espumavam da boca, culpando os jornalistas por «notícias inventadas» que estavam a pôr em causa o bom nome do Benfica. Naquele dia tinha rebentado a história da falta da pagamento de uma tranche do passe de um jogador a um determinado clube. O jogador chamava-se Poborsky, o clube chamava-se Manchester United e o presidente que estava em falta com o pagamento chamava-se João Vale e Azevedo. Naquela época havia poucos telemóveis e a internet ainda era coisa futurista e por isso as discussões faziam-se cara a cara e não na latrina das redes sociais. Era, digamos, uma coisa mais queirosiana, à exceção de que em vez das bengaladas «como ato higiénico» havia estalos e socos. Veja lá que chegou a haver um tipo cuja função era única e exclusivamente a de intimidar os jornalistas e, aqui e ali, usar o arcaboiço e as suas artes performativas sem nunca me esquecer da alcunha que um camarada de fino sentido de humor lhe colocou: vice-presidente para a violência.
Quero com isto dizer, meu caro Bruno, que isto vem de trás. São camadas em cima de camadas. Sabe o que diziam os dirigentes do Benfica (e não só os daquela Direção) quando lhes perguntava os motivos das faltas de respeito? «Lá em cima fazem o mesmo e vocês não se queixam», respondiam. E lá vinha a narrativa do guarda Abel e de uma série de episódios contados por camaradas mais velhos sobre as boas práticas do FC Porto de Jorge Nuno Pinto da Costa nos seus tempos de jovem e pujante líder. Vá ao YouTube, Bruno, e procure conferências de imprensa repletas de adeptos, em que as perguntas mais incomodativas eram abafadas por urros da turba insana ou respostas humilhantes daquele que é, goste-se ou não do estilo, o melhor presidente da história do futebol português.
Foi este caldo cultural que nos fez chegar até aqui e que permite, ainda hoje, a um treinador como Sérgio Conceição ser tão deselegante (para não dizer vulgar) para com um repórter, mesmo que a pergunta não tenha sido feliz (mas não menos feliz do que muitas decisões do atual treinador dos dragões). E, finalmente, que levou o meu caro Bruno a subir a fasquia, fazendo insinuações a toda uma classe, cometendo uma infantilidade maior que um episódio dos Super Wings do Canal Panda. Permita-me então que lhe pergunte: quem é o treinador que anda a pagar jantares a jornalistas para o promover para o cargo de treinador do Benfica? E que jornalistas? E serão mesmo jornalistas? E onde? E comeram o quê: peixe, carne ou vegan? E de entradas, já agora: camarões à guilho, vol-au-vent ou umas conquilhas? Beberam vinho? Foi branco, tinto ou lambrusco? Que castas? Aragonez, Trincadeira ou Malbec? E as viagens: foi de carro, de comboio ou de avião? Ficaram hospedados num hotel, residencial ou alojamento local?
Como vê, Bruno, há uma série de questões que ficaram em aberto e que necessitam de uma resposta. E o meu caro cometeu outro erro grave com este triste episódio: chamou a si toda a atenção (e não me parece que tenha sido de forma propositada, ao velho estilo de Mourinho) e, por conseguinte, todas as culpas do naufrágio benfiquista, quando todos sabemos que isso não é verdade, que o treinador é apenas a peça duma engrenagem que dá sinais de desgaste há anos, sempre com os mesmos erros: jogadores em excesso para determinadas posições (extremos e avançados), jogadores a menos para outras (defesas centrais e lateral-direito) e muitas contratações falhadas. A isto chama-se política desportiva e tem como seu máximo responsável Luís Filipe Vieira. Que, como todos sabemos, meu caro Bruno Lage, também janta com outros treinadores.