Um paradigma científico para a Educação Física

OPINIÃO22.07.202306:30

Onde se destaca, entre outras, a obra do filósofo Manuel Sérgio

ESTIVE presente num almoço realizado recentemente onde convivi umas deliciosas quase três horas de debate profissional.  Presentes Baeta Sequeira da Silva, Carreiro da Costa, Olímpio Coelho, Monge da Silva, Adelaide Patrício, Eduardo Trigo, Fernando Mota e eu próprio. Idades entre os 75 e os 90 anos, experiências profissionais das mais diversificadas. Oito companheiros cujas carreiras profissionais falam por si.
 
Munidos da sabedoria própria de quem deu muito ao País e ao desporto português, cada um soube travar em devido tempo a luta pelo resgatar da menorização social que a nossa profissão foi por vezes alvo. Terminada aquela reunião, dei por mim (imaginem!) a recordar duas coisas.
 
Uma, de Karl Marx, quando afirmou que «a história não faz nada, não possui grande riqueza, não trava qualquer batalha; é o homem, o verdadeiro homem vivo que faz tudo isso. A história é apenas a atividade do homem procurando realizar os seus objetivos»  (Terry Eagleton, «Porque é que Marx tinha razão», Edições 70, Almedina, 2022). 

ACEITANDO ou não a tese filosófica de Marx, acredito que os leitores em geral e os meus companheiros de profissão em particular, serão capazes de se rever nesta ideia fundamental que defende que a história de uma profissão somos nós que a fazemos, os respetivos profissionais.

Outra recordação, teve a ver com o que considero ter sido um tempo aqui e ali ingloriamente perdido. Refiro-me às discussões por vezes estéreis ao redor do paradigma científico da nossa educação física. 

Quanta energia emocional que poderia ter sido potenciada no sentido verdadeiramente importante. Fica, aliás, por demonstrar se os saudosos Mário Lemos, Teotónio Lima e Moniz Pereira, ou os ainda hoje exemplares Melo de Carvalho e José Constantino, poderiam ter canalizado mais e melhor a sua luta pela nossa classe. Idem quanto à importância do Melo Barreiros quando da passagem da designação do antigo INEF/ISEF para Faculdade de Motricidade Humana. Aqui e ali também injustiçado, é hoje bem evidente que, sem o Melo Barreiros, não existiria hoje uma Faculdade de Motricidade Humana. 

OUTRA presença naturalmente incontornável naquele nosso debate, foi a do filósofo Manuel Sérgio, cuja obra a partir de um certo momento tanto me influenciou. Recordo-me de o ouvir defender que, «uma teoria do Desporto só alcança o seu pleno sentido quando acompanhada de ruturas epistemológicas, visando a construção de um novo saber que, no caso do Desporto, não pode ser outro senão o das ciências hermenêutico-humanas.» 

De facto, quem lidera é um homem, são homens os jogadores e os elementos das várias equipas técnicas, os dirigentes são homens e a ‘circunstância’ (Ortega y Gasset) é humana também. «Não é por não saberem de futebol (ou de basquetebol, ou de voleibol, ou de andebol, etc, etc...) que muitos treinadores, no exercício da sua profissão, se gastam e se esgotam em insanáveis dúvidas, hesitações e perplexidades, mas porque não se conhecem como pessoas antes de se conhecerem como treinadores, nem intuem, na personalidade dos seus jogadores, o radical fundante dos seus desempenhos como praticantes de uma determinada modalidade.» 

Permito-me também identificá-lo como o primeiro estudioso, em língua portuguesa (cfr. A Prática e a Educação Física, 2ª edição, Compendium, Lisboa, 1982, p. 22/23) a escrever que na Educação Física deveria ser evidente: o primado da formação sobre a informação; o primado das ciências humanas sobre as ciências da natureza; o primado da imaginação sobre a razão, o primado da socialização sobre a individualização e o primado da personalização sobre a massificação. 

E como? Partindo de Gaston Bachelard e do ‘corte epistemológico’ deste autor, aconselhava: «Negação do conhecimento comum, de forma a servir, o melhor possível, a compreensão do Homem e a intervir na sua constante libertação; negação do ato pedagógico, correspondente a uma organização fixista da sociedade; negação do voluntarismo, ou ativismo espetacular, mais interessado na gloríola pessoal do que na transformação da realidade objetiva; negação de um tipo de sociedade onde a ciência não se concretize» (p. 21).
 
E, portanto, no caso específico da Educação Física, negá-la enquanto produto do racionalismo, já que nasce no século XVIII (o século áureo do racionalismo) e que, deste ‘corte epistemológico’ nascesse uma nova ciência humana. Talvez muitos não o saibam, mas Manuel Sérgio defendeu num determinado momento que os chamados ‘professores de educação física’ eram ‘especialistas em humanidade’.

QUALQUER universidade se compõe de um grupo de faculdades ou institutos superiores, cada um deles com o seu paradigma científico autónomo. E aqui uma questão se levantava então: qual era afinal o paradigma científico onde se fundamentava a Educação Física? 

É que a Educação Médica tem as Ciências Médicas ou Ciências da Saúde, como fundamentação primeira; a Educação Jurídica fundamenta-se, em primeiro lugar, na Ciência Jurídica, etc. E a Educação Física? Qual a ciência onde se fundamenta? Parafraseando Manuel Sérgio, como ‘especialistas em humanidade’ a ciência que pode fundamentar a profissão de professor de educação física só pode ser uma ciência humana. 

E, sendo uma ciência humana, é no homem (e na mulher) como um todo que radica a sua profissão. Logo, a designada Educação Física é afinal o ramo pedagógico de uma ciência humana que Manuel Sérgio denominou como Ciência da Motricidade Humana, com quatro categorias como principal material de estudo: Corpo, Movimento, Intencionalidade e Transcendência. 

A Transcendência, na tese deste autor, embora ele se considere um discípulo de Pierre Teilhard de Chardin, não tem qualquer conotação religiosa. Significa unicamente que, em todas as circunstâncias e idades, o ser humano deve considerar-se uma tarefa por cumprir. E que, em todas as circunstâncias e idades, ele é sempre um sujeito e nunca um objeto. Recordo-me de o ouvir dizer «sobre o corpo, na fenomenologia, o meu amigo faça aquilo que eu não soube fazer».

VERDADEIRAMENTE, onde assentou a negação que em geral a classe profissional de educação física dirigiu a Manuel Sérgio? Para este filósofo, o objetivo que o movia era o de criar a ciência onde a designada educação física pudesse fundamentar-se e foi à epistemologia, então nascente no nosso país, que foi buscar apoio.
 
Até à chegada de Manuel Sérgio à docência, no INEF e no ISEF (em 1968) os estudos epistemológicos não eram conhecidos. Mas foi, através deles, que Manuel Sérgio afirmou (e tentou provar) que a Educação Física tem um paradigma científico autónomo, na área das ciências humanas. Indubitavelmente, uma ciência autónoma e uma ciência humana, que tal como tantas vezes ouvi Manuel Sérgio defender, «muito deve aos seus professores de educação física».
 
Ao contrário do que por vezes se confundiu, sempre senti no Manuel Sérgio uma vontade de ajudar os então ‘prof. EF’ a elevarem-se ao nível da Medicina e da Pedagogia num encontro interdisciplinar entre iguais. Aliás, palavras essas confirmadas pelo filósofo Miguel Real, num opúsculo da autoria de Manuel Sérgio, «Para um Desporto do Futuro», editado pelo IPDJ, quando escreveu que este corte «pode considerar-se, do ponto de vista da história da ciência em Portugal, como uma autêntica revolução epistemológica, no campo das ciências sociais e humanas».

Idem no que respeita aos profs. Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco e ao companheiro Gustavo Pires que disseram o mesmo, como introdução ao estudo da obra de Manuel Sérgio, no I Volume da Obra Seleta, de Manuel Sérgio, Edições Afrontamento, 2023.

SERIA importante também que um dia se possa transcrever o que disse de Manuel Sérgio o saudoso treinador de futebol José Maria Pedroto; ou o que dizem ainda hoje de Manuel Sérgio, treinadores como José Mourinho, Jorge Jesus, Rui Vitória, José Peseiro, José Neto e outros mais. Mas não resisto a auto citar-me quando referi que «Manuel Sérgio defendeu uma nova noção de motricidade e de comportamento, um conceito complexo de corpo retirado da moderna fenomenologia. No centro destas suas ideias, surgia a tese de que a verdadeira referência do comportamento não deveria ser o corpo entendido como referencial exclusivamente fisicalista, mas sim a pessoa integral, desvendada além de todos os dualismos.» 

«Na área da educação física, tratava-se assim de propor uma verdadeira transição teórica revolucionária. Transformação que Manuel Sérgio propunha então à luz de uma história filosófica longa, mas tão nova para um investigador da área da educação física; naturalmente, as suas opiniões tiveram um forte impacto sobre a minha forma de pensar.» 

«Indicava-me, afinal, a necessidade de alargar o estudo da própria noção de comportamento para lá dos quadros estritos do horizonte naturalista. Tal ideia nova de pessoa reclamava, na perspetiva de Manuel Sérgio, a investigação de uma outra ideia de corpo e corporeidade, uma ideia mais fundamental: a ideia de uma corporeidade vivida, experienciada, exercida. Um comportamento que, afinal, não mais poderia ser entendido como dado observável num corpo disponível, mas antes como realidade vivida, integral, incarnada de um sujeito pessoal.»

AFINAL, um corte epistemológico de onde, a partir da tradicional Educação Física, se impunha fazer nascer uma nova ciência e um novo paradigma, a Motricidade Humana. 
Faça-se assim justiça ao mérito de Manuel Sérgio!

Por mim, e em sua homenagem, termino citando palavras de sua autoria: «Ninguém, razoável, duvida: definir o Homem é um risco. Risco em toda a plurivalência da palavra. Na verdade, como fixar com exatidão a subjetividade humana?”  (Há desporto sem valores? Espaço Universidade, site Jornal A Bola, 18-6-2018).