Último contador (sempre) da Luz
1 Foi em 13 de Setembro de 2010 que iniciei a minha colaboração semanal n’A BOLA, por convite do seu director Vítor Serpa. Tendo aceitado o desafio, lembro-me de, na conversa que tivemos, lhe haver dito que escrever todas as semanas me causava algum desconforto por, então, achar que não conseguiria ter assuntos que pudesse tratar com o mínimo de interesse. O certo é que meti mãos à obra, todas as quartas e quintas-feiras, nos meus 689 Pontapé-de-saída. Foi uma longa digressão por milhentos assuntos da actualidade ou fora dela, do futebol ou de outros desportos, de cá e do mundo, de curiosidades e de divagações. Até que, há pouco mais de três anos, Vítor Serpa me desafiou para um projecto mais exigente, em tempo, em extensão e em responsabilidade: uma página inteira de A BOLA. Embalado pelos Pontapé-de saída, migrei para O contador da Luz, no qual realizei 174 leituras no meu modo de as contar.
Pergunto-me agora como consegui escrever mais de 2,5 milhões de caracteres (e cerca de meio milhão de palavras). Não nego que, muitas vezes, senti na pele a angústia da falta de tema para abordar, ou melhor, da falta de temas que, na minha singela maneira de ver, devessem ser abordados.
Há uma lei na vida e da vida que, com a idade, vamos percepcionando de uma maneira mais nítida. É que, para tudo o que começa, devemos ser capazes de discernir a definição do tempo a partir do qual devemos terminar. Para mim, tem havido uma regra que me tem ajudado a encontrar esse momento: quando o prazer, o estímulo, a vontade de continuar passam a ser inferiores ao desgaste, à penosidade e à sensação (certa ou errada) de repetição. Esta inequação tem sido impositiva e já muitas vezes posta à prova em diferentes contextos. Sinto que, se não tiver o discernimento de a perceber, perco convicção e clareza que sempre exijo para o que devo fazer e, neste caso, para escrever com respeito por quem no jornal sempre em mim confiou e pelos leitores que, com entusiasmo ou indulgência, me têm lido.
Pois, caros leitores, cheguei ao tal ponto de intersecção das duas curvas. E decidi, de motu proprio, concluir esta colaboração regular com A BOLA. Sei, de antemão, que até vou sentir nostalgia, porque a BOLA é também uma das minhas casas, que me ajudou a ter paixão pela língua pátria e que sempre me acompanhou, já lá vão mais de sessenta anos. E se algum leitor mais paciente achar que eu não deveria interromper este longo período, lhe direi que prefiro que fique com saudade do que passe a ler-me com benevolência. Há outros factores adjacentes que também contribuíram para esta minha decisão. Refiro, entre outros, dois: o ambiente doentio, atomista, impreciso, disruptivo, maniqueísta, em que o futebol se deixou envolver, muito por força de excesso de oferta mediática e de canais televisivos abutres, que não estimulam, antes pelo contrário, vêm reduzindo a pó qualquer abordagem mais racional deste desporto; e o cinzentismo que, por força da pandemia que nos inflige e impõe restrições radicais, se sente no desporto: sem público, sem cor, sem alegria, sem vivacidade, sem oportunidade para os mais jovens, triste, até depressivo.
Neste momento, quero expressar o meu mais sincero reconhecimento por esta instituição, na pessoa do seu director Vítor Serpa, como também do seu director-adjunto José Manuel Delgado. Se mais nada devesse reter da minha colaboração - o que está longe de corresponder à verdade - a sincera amizade que com eles pude robustecer seria o suficiente para ter dado por bem conseguido este decénio de gostosa colaboração.
2 Estes dez anos de escrita coincidiram com uma década do meu clube bem melhor do que as duas precedentes. Seis vezes campeão nacional e um tetracampeonato (e nunca descendo abaixo do 2.º lugar), duas Taças de Portugal, cinco Taças da Liga, quatro supertaças e duas vezes finalista da Liga Europa.
Neste epílogo da minha crónica semanal, o futebol do Benfica atravessa, porém, uma fase estranha e até difícil de compreender com precisão. Considero que tem sido o clube que mais sente, no ânimo e nos resultados, os efeitos da pandemia, aliás, evidente na penosa caminhada para a perda do título em 2019/2020. A ausência de um poderoso Estádio da Luz com mais de 50 000 adeptos e o vazio de jogar fora de casa sem o apoio constante dos benfiquistas de toda a parte tiveram e continuam a ter um efeito prejudicial no desempenho da equipa.
Chegados aqui, importa não meter a cabeça na areia, mas compreender e tirar ilações sobre o que se vem passando. Vejamos alguns pontos a merecer reflexão construtiva.
As avultadas e excepcionais receitas com transferências estão a reflectir-se do outro lado da moeda, ou seja, o que antes eram aquisições de 5 ou poucos mais milhões agora só se conseguem por fasquias bem mais altas. Foi assim que vieram jogadores medianos que não são melhores (ou são mesmo piores) do que atletas da casa. Weigl por 20 milhões vale mais do que o Florentino emprestado? Pedrinho por 18 milhões será capaz de os justificar? Um tal Morato, que não passa da cepa torta na equipa B, pode custar 6 milhões? Por outro lado, perde-se tempo e desbaratam-se energias com longos processos negociais, onde não se é capaz de preservar o seu carácter sigiloso e de gerar o bom efeito surpresa, antes se deixam florescer especulações, fake news e se alimenta a voragem de programas televisivos em busca de matéria-prima vampiresca. Assim, com efeitos importantes, ainda que não mensuráveis, tivemos os romances Cavani, Rúben Semedo e, até agora, Lucas Veríssimo, e uns namoricos com uns tantos atletas do Flamengo. Não podemos menorizar os efeitos nocivos nos jogadores, que lêem e ouvem as notícias, por mais blindado que seja um balneário. Por outro lado, houve e há jogadores na permanente corda bamba, a marinar num caldo de desânimo. Das duas, uma: ou interessam e não se deixa desenvolver, ainda que larvarmente, a ideia de que estão a mais, ou simplesmente devem partir. São os casos de Cervi, Chiquinho, Ferro, entre outros. Nos poucos minutos que jogam, imagino o estado de espírito com que o fazem! O caso de um guarda-redes italiano na época passada que ensombrou o futuro de Vlachodimos deveria fazer parte do manual de como não proceder, deixando-se passar a ideia (injusta) de que o grego-alemão é apenas o titular porque não se conseguiu arranjar melhor. Também me custa ver a concentração da procura de reforços no estrangeiro, quando, para alguns lugares e igual desempenho, os há, com menor custo, em equipas médias em Portugal. Entretanto, dos jogadores que foram emprestados, poucos são os que jogam, o que contraria a boa ideia de os fazer crescer, antes do regresso. Alguns empréstimos são até pouco compreensíveis. Deixar sair Vinícius para onde se sabia que dificilmente seria titular, custa a perceber. No meio de tudo isto, a equipa ressente-se. Há lugares para os quais ainda não há, até agora, um titular à altura das exigências do grande clube que é o Benfica. É o caso das chamadas posições 6 e 8, com várias tentativas de Jorge Jesus para encontrar a solução ideal, mas sem sucesso. Gabriel tem tanto de jogador excelente, como de irregular. Taarabt é um perigo, pois por cada grande jogada vertical que é capaz de conseguir, perde a bola ou falha passes simples, proporcionado contra-ataques venenosos (vide a segunda parte da Supertaça). Samaris, um exemplo de benfiquismo, foi obrigado a passar há muito para a reforma antecipada e perdeu ritmo de jogo e confiança. Já no plano directivo, não faz sentido que o responsável do futebol saia a meio de uma época, com um pré-aviso de mês e meio. Que autoridade tem um dirigente quando os jogadores sabem que ele já pouco conta?
A eliminação por um modesto PAOK é uma sombra que ainda não saiu do espírito da equipa e teve como consequência a transferência de um dos melhores do plantel, Rúben Dias. O jogo da Supertaça evidenciou aspectos preocupantes: pouco espírito competitivo, deficiente sentido colectivo, ausência de jogadores que pensem o jogo (aqui se viu a ausência de Pizzi, por alguns criticado, mas que é um atleta que joga com inteligência), ineficácia no ataque sempre com mais um toque desnecessário. O plantel ainda não revelou a capacidade que se exigiria depois de um investimento de 100 milhões de euros. Vê-se isso no esmorecimento que o prestigiado Jorge Jesus, por vezes, deixa transparecer.
Tenho uma fundada expectativa positiva neste mercado de Janeiro, no que se refere a mais e melhores opções em lugares-chave do plantel. Continuo a acreditar no título que, na minha opinião, se vai jogar muito até 31 de Janeiro, com jogos importantes em Alvalade e no Porto. Curioso é que no dealbar de 2021, só duas equipas dependem delas próprias para se sagrarem campeãs: o Sporting e o Benfica. O sempre tão mediaticamente ungido FCP não está nessa posição, pois que a 4 pontos do actual primeiro classificado, só o defrontará apenas mais uma vez.
Enfim, este é o meu último contador, sempre com a Luz em dia e no meu coração!