Tristes e sós

OPINIÃO27.03.202003:00

NEM nos piores sonhos fui algum dia capaz de me imaginar a caminhar no Chiado e no Bairro Alto como se a espécie humana tivesse desaparecido. É impressionante. Chega até a arrepiar o vazio, esse silêncio tão profundo e a frieza das ruas, desoladoramente desertas, como se a vida tivesse deixado de existir.
Era inimaginável que um dia chegássemos a ver o Chiado e o Bairro Alto, como ainda há dias notavelmente escreveu o poeta Manuel Alegre, «sem beijos nem abraços» sem «risos», sem «esplanadas», sem «passos», sem «raparigas e rapazes de mãos dadas», numa Lisboa que «em cada rua deserta ainda resiste».
O velhinho Bairro Alto e o nobre Chiado vivem, sem gente, o infortúnio deste silêncio sem fim, e confesso a estranha sensação de descida ao inferno, sobretudo à noite, quando apenas sobram os lampiões tristes e sós, como escreveu o genial Carlos Tê para a música do genial Rui Veloso, e chega ao fim o trabalho dos poucos jornalistas que ainda restam neste velho e boémio Bairro Alto, e os jornalistas, também eles resistentes e agora quase sem companhia, podem, por algumas horas, recolher também a casa, antes de um novo dia de missão, porque ser-se jornalista é, de algum modo, ser-se também missionário, no sentido em que o dever de informar é a verdadeira missão do jornalista.

Nestes tempos em que a natureza nos desafia como nunca no tempo das gerações mais novas, e nos faz, severamente, lembrar a importância das coisas mais simples da vida, caminhar por esta Lisboa parece fazer-nos sentir mais ainda a dor dos que mais sofrem na luta contra este inimigo comum e, ao mesmo tempo, a ter maior e mais profunda saudade de um sorriso ou de um simples abraço. Parecemos contar os dias como se estivéssemos numa prisão.
São duros e cruéis estes tempos e são, para nós, resistentes caminhantes desta Lisboa tão triste, impossíveis de esquecer estes dias vazios sobre os quais tive, desta vez, vontade de vos escrever.  

CONTINUO a vir para o 23 da Travessa da Queimada, no interior deste Bairro Alto de que vos falo, onde vou cumprindo esta minha missão como jornalista já lá vão 30 anos, porque A BOLA TV, este resistente canal de televisão de A BOLA, assim o exige.

A televisão, ao contrário dos jornais e, até, talvez, das rádios, não pode ser feita totalmente a partir de casa, pelo menos alguma televisão, e por isso, muitos de nós, que decisivamente contribuem para que A BOLA TV possa continuar a ser, diariamente, uma companhia dos portugueses, cá andam, a caminhar pelas desertas ruas do Bairro Alto, com a estranha sensação de estarmos num mundo que se perdeu.

A televisão, sobretudo a televisão que faz informação, que dá as noticias, que leva a atualidade a casa de cada um de nós, a televisão, como A BOLA TV, que não desiste de estar ligada ao mundo, essa televisão tem uma alma própria e insubstituível, a alma das pessoas e, sobretudo, a alma das pessoas que dão a cara por todas as equipas que fazem televisão. E é, também, por isso, que as televisões de notícias não podem ir para casa e têm de continuar a cumprir esta missão de informar quem tem forçosamente de ficar em casa para que todos possam sair de casa quando, por fim, e o mais depressa que for possível, o pior já tiver passado.
Mas é exatamente porque a alma das televisões como ABOLA TV são as pessoas, as pessoas que dão a cara, as que estão em direto, no estúdio, a dar as notícias, as que, no fim da linha, tornam visível o trabalho de tanta gente atrás da cortina, que alguns de nós continuam, notável e diariamente, a caminhar para o Bairro Alto e a testemunhar tudo o que menos queríamos - ruas sem alma, as portas fechadas, os avisos nas vitrinas, os becos sem voz, as esquinas sem ao menos pequenos sussurros.  

TRABALHEI, e apaixonei-me, pela primeira vez por este pequeno coração de Lisboa que é o Bairro Alto ainda uns anos antes de chegar, por fim, ao jornal A BOLA, onde entrei para iniciar funções numa terça-feira, primeiro dia de março de 1989. Naquele tempo, eram ainda muitos os jornais que viviam no Bairro Alto, mas hoje, e já com 75 anos de vida, resta apenas A BOLA, ‘o jornal das cinco letrinhas mágicas’, como lhe chamava Vítor Santos, lendário chefe de uma redação que se tornou em Portugal referência do jornalismo e da Liberdade.

Naquele tempo, era costume os jornais fecharem tarde, e como fechavam tarde era comum ver-se, altas horas, o Bairro Alto entregue apenas ao fado e aos últimos dos boémios desta Lisboa do Tejo, das gaivotas, das canoas e dos poetas.

Lembro-me bem desses tempos, em que as madrugadas pareciam muitas vezes apenas companheiras dos esquecidos.

Mas nada que se compare a estas noites desoladoramente tristes e sós que tão friamente abraçam quem - como eu e tantos outros companheiros - tenta manter de pé o mais nobre espírito do jornalismo - a missão de vos contar, da melhor forma que soubermos e pudermos, o que a vida, às vezes, como agora, com dramática dureza, nos vai reservando.
É para isso que cá estamos!