Taça Varíssima
1 Uma semana efervescente por causa da até há pouco tempo desconsiderada Taça da Liga, agora com um naming comercial, uma final four e uma fan zone. Tudo muito fino, tudo muito british! Depois de sete vitórias encarnadas, os seus históricos rivais olharam para a - por eles apelidada desprezivelmente de ‘Taça Lucílio Baptista’ e outros epítetos - com ganas de a ganhar. Na esteira de alcunhas dadas ao troféu, há quem já lhe chame agora em versão mais hodierna, ‘Taça Varíssima’ ou, mais acidamente, ‘Taça Ali Babá’. O Sporting já conseguiu o troféu por duas vezes, em quatro finais e semifinais onde não venceu nenhum jogo nos 90 minutos. Já o Porto, ainda não é desta que pode aspirar o fazer o pleno, como só o Benfica conseguiu. Talvez por isso o seu treinador, pregador de sermões de moralismo e transparência q.b. quando ganha e tão apreciados pelo mundo desportivamente correcto, tenha achado exemplar nem ter esperado pela entrega do troféu ao SCP. Bem prega Frei Tomás: faz o que ele diz, e não o que ele faz.
Aliás, escreveu-se direito por linhas tortas, quanto às expectativas portistas. Por um lado, porque só chegou a esta fase final por um contorcionismo regulamentar de uma lesão no jogo da fase de grupos com o Belenenses, imediatamente avocado pelo diplomata presidente da Liga. Por outro lado, porque bem se pode afirmar que quem com VAR mata (ou vence), com VAR morre (ou perde).
Já quase tudo se disse nesta fábula do VAR da Liga. Dos seus protagonistas aos seus dirigentes. Do protocolo infalível ao porto-ao-colo insinuado. Da intervenção protocolar só com a certeza absoluta (já de si um eufemismo) à intervenção com incerteza por demais. Dos seus extremosos defensores (até ver ou até ao virar da esquina) aos seus contestatários (até ver ou até ao virar da esquina). Das auto-dispensas de se ir ver o monitor ao seu recurso ajuizado pelo decisor soberano. Da geometria das linhas que não há às linhas de uns jeitosos que as moldam a seu bel-prazer. Do vídeo do árbitro que interfere ao árbitro do vídeo que deturpa.
Provavelmente o grande rei das assistências (do VAR, entenda-se) é o agora exausto Fábio Veríssimo, que bem merece descanso e oportunidade de aprofundar a sua formação. A sua coerência, seja como árbitro, seja como VAR é cristalina. Alguns exemplos comparativos: no Benfica-Porto de há dias, achou dispensável falar com Xistra depois dos dois golos do Porto, precedidos de falta. Mas, não se coibiu de lhe pedir para analisar um inventado e fantasmagórico braço de Seferovic no golo do Benfica, que só ele, com a ajuda de imagens repetidas, descortinou, com assegurada infalibilidade, a fazer fé no que nos têm dito e redito sobre a lógica do tal protocolo: a de o VAR só interferir no caso de plena certeza de que a decisão foi claramente errada. Lembram-se de Veríssimo no Porto 2- Vitória de Guimarães 3, onde confirmou um golo tão claramente ilegal de um fora de jogo portista que até fez dó e não viu um penálti do tamanho dos Clérigos a favor do Vitória? Ou dois penáltis cristalinos a favor dos azuis do Restelo por marcar no ano passado no Dragão quando havia 0-0?
Já quanto ao decretado fora de jogo que motivou a anulação do 2-2, estamos perante um momento hilariante. O árbitro assistente que estava bem distante da linha, que depois terá invocado para o offside, não assinalou nada até a bola ter entrado na baliza. O árbitro Xistra falou com o VAR Veríssimo, numa, por certo, amena cavaqueira. Provavelmente este último a dizer que não tinha trazido de casa régua e transferidor e que, como tal, não poderia dispor da linha que, inexplicavelmente, não lhe é fornecida pela logística que continua no tempo da pré-história informática. Mas eis que Veríssimo rodou 180 graus: antes não terá tido a certeza de infracções de Óliver e Marega (este então parecia um couraçado a derrubar uma lancha) e, por isso, não houve anulação de golos. Depois, estaria 100% seguro (ele e também Xistra) da anulação do golo benfiquista e, como tal, o protocolo obrigaria à decisão tomada. Até arrisco dizer que Rafa deveria ter sido admoestado pela direcção do Benfica por não ter cortado as unhas dos dedos do pé que estariam … fora de jogo. Uma coerência da mais despudora incoerência! Uma roubalheira em estado puro, parafraseando outros estados puros de que sempre fala o comentador Lobo sobre certas e determinadas equipas.
2Decorrida já uma época e meia de VAR, bom seria que os clubes e a Liga os analisassem, tirando ilações dos erros, procurando introduzir alterações às regras e à composição dos seus quadros. Duvido que tal se venha a fazer, tal a crispação e a opinião errática de todos e cada um em função de cada momento. É bom não esquecer que o VAR veio criar tão elevadas expectativas que não podem agora correr o risco de ser goradas.
Importa analisar alguns pontos com benefício futuro para o futebol e competições. Primeiro, não faz sentido que um VAR hoje faça dupla com um certo árbitro e amanhã seja exactamente ao contrário, numa lógica involutiva do tipo pescadinha de rabo na boca. Segundo, não é profiláctico que o conjunto dos VAR e dos árbitros de campo seja o mesmo ou quase o mesmo. É que, independentemente do valor e seriedade de cada um, eles estão em regime concorrencial, para as classificações, para a carreira internacional, para a escolha nos jogos. Ali não é apenas cooperação de que se trata, por mais bondosa que seja a nossa análise. É que um erro de um por causa de outro pode custar caro mais a um do que a outro. Terceiro, não sabemos que tipo de avaliação e seriação há do trabalho dos VAR. Mandaria a transparência sempre tão invocada e sempre tão relegada, que se tornassem públicos os critérios, as classificações e os agentes avaliadores. Quarto, nem faz sentido um VAR com estatuto inferior ao de um árbitro de campo (logo aquele com um compreensível e defensivo capitis diminutio), nem um VAR também árbitro com um trajecto superior ao do árbitro também VAR (logo, este em situação também defensiva e, às vezes, subalterna). Mais tarde ou mais cedo, tem de haver um corpo VAR distinto dos árbitros de campo.
É evidente que nenhum sistema consegue imunizar todos os erros possíveis. O erro faz e fará sempre parte da natureza humana e bom será que não se queira almejar, no futebol, a fantasia de um desporto isento de erros. Aliás, uma das suas paradoxais, mas indissociáveis características, continua a ser a impossibilidade de erradicar o erro. A maior parte dos golos e resultados resultam, directa ou indirectamente, de erros ou omissões dos jogadores e dos treinadores e, também, da arbitragem. Para esta, o objectivo deve passar pela minimização das más decisões, recorrendo a novas práticas e tecnologias que, todavia, não causem danos na fluidez do jogo jogado, assegurando a transparência e escrutínio público dos seus agentes, de eventuais conflitos de interesse, de incompatibilidades, e garantindo a avaliação pública das arbitragens, relatórios e respectivas avaliações. Não se tratando de ciência exacta e não se podendo declarar morte ao erro, que ao menos haja insuspeição quanto à sua natureza extra-jogos.