Taça e Traça
1Tenho saudades do tempo da Taça de Portugal - já lá vão muitos anos - quando, terminado o campeonato, era disputada de enfiada. Bem sei que agora não há condições para que assim seja. Mas continuo a pensar que, entre o que já não pode ser e o que agora é, vai uma distância enorme. Hoje é tudo ao molho e fé em… sorteios. Se tivesse de escolher o melhor modelo, diria que a época deveria começar por esta competição, deixando apenas para depois do campeonato as meias-finais e a final. Seria um troféu mais dinâmico e competitivo. Dava mais corpo à ideia de ser a competição mais democrática. Teria como vantagem a consequente não interrupção do campeonato, a não ser por razões de jogos obrigatórios de Portugal. Evitaria até a batota de castigos limpos numa competição diferente. Se a isto, juntássemos a obrigatoriedade de, em todas as eliminatórias (e não apenas na agora realizada terceira eliminatória), os clubes primodivisionários jogarem na qualidade de visitantes quando defrontassem equipas de escalões diferentes, seria uma prova mais entusiasmante e vertebrada.
E o que temos agora? Uma versão engasgada em regime de conta-gotas. Além de equipas eliminadas, que, em magote, são repescadas (21, no total de 55), as datas previstas já com a presença das principais equipas, são 20 de Outubro (3.ª eliminatória), 22 de Novembro (4.ª pré-eliminatória), 18 de Dezembro (oitavos-de-final), 15 de Janeiro (quartos-de-final), as duas primeiras semanas de Fevereiro (meias-finais). Vá lá que aqui acabou-se com as duas mãos para os semifinalistas que chegaram a ser intervaladas por dois meses…
Por tabela, temos o campeonato nacional numa versão de trapézio escaleno. A continuidade da competição é significativamente quebrada. A primeira volta decorre entre 11 de Agosto e 19 de Janeiro, ou seja durante 5 meses e 1 semana (!). Já a segunda volta é concentrada em 3 meses e 3 semanas (desde 26 de Janeiro a 17 de Maio). Em 9 semanas de Outubro e de Novembro, apenas se disputam 4 jornadas! Até é preciso algum esforço de memória (ou consulta) para nos lembrarmos do ponto actual do campeonato…
2Entrementes, a actualidade com algum interesse escasseia. Os jornais desportivos diários têm de ter muita imaginação para dar corpo às muitas páginas que disponibilizam aos seus fieis leitores. E eu, simples cronista semanal, confesso a minha dificuldade em escrever sobre assuntos que ainda não tenham sido já abastadamente comentados ou inventados.
Foi neste ínterim que resolvi fazer uma incursão, algo melancólica, sobre onde param (ou pairam) clubes que, na minha juventude ou mais recentemente, andaram na primeira divisão e depois desapareceram na descida às catacumbas de divisões secundárias.
Que me desculpem os leitores mais jovens, pois esta parte da crónica de hoje tem indesmentivelmente um sentido geracional mais estrito. Esta digressão é mais própria da minha geração, mas é desconhecida da grande maioria das seguintes.
O campeonato nacional deste ano assinala - ao que julgo, pela primeira vez - um marco insólito ao longo da sua história. É que entre a cidade de Lisboa e a cidade do Porto, na faixa litoral, não há nenhum clube a jogar na 1.ª divisão! Faltam, sobretudo, a Académica de Coimbra, um ou mais clubes do distrito de Aveiro, a União de Leiria e, mais perto de Lisboa, o Alverca ou o Torreense. Apenas encontramos o Tondela, mas já mais no interior, no distrito de Viseu.
Onde estão agora equipas cujo habitat mais comum foi o do principal campeonato? Não falando das que agora militam no 2.º escalão, vejamos o que tem sucedido às outras.
No agora chamado Campeonato de Portugal (nome ambíguo, como se todos os outros fossem campeonatos que não de Portugal…) e, outrora e mais humildemente, 3.ª divisão moram: Vizela, Fafe, Recreio de Águeda, Sp. Espinho, Leça, Sanjoanense, Trofense, Caldas, Amora, que passaram mais ou menos esporadicamente pela 1.ª divisão. Lá se encontram também clubes que tiveram percursos mais assinaláveis, ainda que em tempos diversos: o Beira-Mar (27 presenças e uma Taça de Portugal, sendo o 11.º clube mais assíduo no campeonato principal numa lista completa de 71 equipas), agora a recuperar depois de ter quase desaparecido, a União de Leiria (18) que procura, igualmente, renascer das cinzas, o velhinho Lusitano de Évora (em bom rigor Lusitano Ginásio Clube), único representante do distrito a jogar na principal divisão em 14 temporadas, com jogadores que ficaram na boa memória do futebol, como Vital, José Pedro, Falé e Fialho, o Sporting de Espinho (11), o Oriental de Lisboa (7), o Torreense (6), bem como o Alverca (5) onde pontificou Mantorras. Mais recentemente, lá estão os antes primodivisionários Arouca e Olhanense, depois de descerem dois degraus muito rapidamente. Por fim, assinala-se um clube de importante trajecto na Divisão maior, a CUF do Barreiro (23 vezes, alcançando um terceiro lugar e dois quartos), entretanto metamorfoseado no seu nome e agora chamado GD Fabril Barreiro e, ainda, o Olímpico do Montijo, descendente do antes Montijo que esteve 3 anos no principal escalão. O Felgueiras, que passou uma vez, no escalão principal (em 1995/1996, treinado então por Jorge Jesus) deu lugar ao FC Felgueiras 1932, a jogar também no 3.º escalão, tal como o União da Madeira que enfrenta um processo de insolvência.
Já em campeonatos distritais, há sete equipas, quase todas com uma boa história na 1.ª divisão: Barreirense (24 épocas), Atlético (24), Salgueiros (24), União de Tomar (6), único representante do distrito de Santarém, e Tirsense (8), a que se junta o Ginásio de Alcobaça que por lá passou em 1982/1983.
Clubes há que foram extintos e, entretanto, ressuscitaram. O Estrela da Amadora (16 presenças e uma Taça de Portugal), deu lugar ao agora Clube Desportivo Estrela, a iniciar a sua longa caminhada na 3.ª divisão distrital. A Naval 1.º de Maio (6 presenças), cujo futebol sénior foi suspenso, foi de algum modo também replicada através da Associação Naval 1893, a disputar os distritais. Também o velhinho União de Coimbra sucumbiu aos novos tempos, surgindo em versão 2.0, o agora chamado União 1919. O Elvas, clube que esteve 5 vezes na 1.ª divisão, e onde pontificou Patalino, deixou de ter equipa sénior em 2018. Também a última equipa alentejana a estar na 1.ª divisão, o Campomaiorense deixou de ter uma equipa sénior, tal como o Seixal que esteve lá em cima duas vezes. Por fim, o extinto GD Riopele jogou em 1977/1978 na 1.ª divisão.
Registe-se, ainda, a anomalia, por demais incompreensível, de o Clube de Futebol os Belenenses, uma vez campeão nacional e até há algumas décadas um dos quatro grandes, estar a disputar a 2.ª divisão distrital de Lisboa, enquanto a ainda estranhamente denominada Belenenses SAD está a jogar no campeonato principal. Este é o caso mais notório de divórcio clube/SAD, mas não se fica por aqui, com consequências também no Atlético Clube de Portugal, Lusitano de Évora, Torreense, Cova da Piedade, União de Leiria, Penafiel, Olhanense. Se as autoridades desportivas continuarem a ignorar olimpicamente esta questão, mais casos haverá no futuro na disputa entre a história, tradição e coração, de um lado, e o dinheiro de investidores de ocasião (onshore e sobretudo offshore), do outro.
Por fim, uma constatação curiosa: dos 18 clubes que esta temporada actuam na 2.ª Divisão, só três nunca foram primodivisionários: Mafra, Vilafranquense e Cova da Piedade.