Somos todos Cruyff
Há uma cena do filme Tempos Modernos, de 1936, em que Charlie Chaplin aparece numa linha de montagem a ajustar dois parafusos numa placa: aparafusa, aparafusa, aparafusa. Depois, o diretor da fábrica aumenta a velocidade da máquina e Chaplin começa a aparafusar cada vez mais depressa: aparafusa, aparafusa, aparafusa. Atrás dele, um homem martela o primeiro parafuso cada vez mais depressa: martela, martela, martela. Atrás dos dois, um terceiro homem martela o segundo parafuso cada vez mais depressa: martela, martela, martela. A seguir, quando é hora do almoço, de tão automatizada que está a sua cabeça, Chaplin começa a tentar aparafusar os botões da saia de uma mulher que se agachara. Era o auge da industrialização. Cada um de nós começava a perceber cada vez mais e mais de que cada vez menos e menos. Ou seja, um dos homens só aparafusava. Mas aparafusava, aparafusava, aparafusava. O outro só martelava o primeiro parafuso. Mas martelava, martelava, martelava. O terceiro só martelava o segundo parafuso. Mas martelava, martelava, martelava. E assim sucessivamente.
Ofutebol ia no mesmo sentido. O guarda-redes só defendia. Mas defendia, defendia, defendia. Como Soares dos Reis. O defesa só cortava bolas. Mas cortava, cortava, cortava. Como Guilhar. O médio só organizava. Mas organizava, organizava, organizava. Como Mariano Amaro. O avançado só marcava golos. Mas marcava, marcava, marcava. Como Peyroteo. Havia exceções, mas a regra era esta: um defendia, outro cortava, outro organizava e outro marcava. No final dos anos 50, o futebol começou a desindustrializar-se. Hernâni e Coluna marcavam e construíam. Cavém e Morais passavam de avançados a defesas. O auge da desindustrialização deu-se com o Ajax. De Cruyff. E Rinus Michels. E ?tefan Kovacs. Nem sequer se percebia quem defendia, quem construía e quem atacava. Eram os anti-Tempos Modernos. Faziam tudo. E tudo bem.
RARAMENTE, pelo que me lembro, o jornalismo foi industrializado. Dou dois exemplos. Carlos Miranda fazia a Volta a França, os Mundiais de cross ou a final dos 100 metros livres de natação. Carlos Pinhão estava num Mundial de futebol, num torneio de chinquilho, num jogo de andebol ou a entrevistar um poeta. Era perceber cada vez mais e mais de que cada vez mais e mais. No meu caso, já fiz quase tudo: atletismo (primeiro), futebol (depois) e (pelo meio) assembleias de tudo e mais alguma coisa, entrevistas a pessoas ligadas a andebol, basquetebol, hóquei ou natação. Agora, confinadinho em casa, tornei-me numa espécie de canivete suíço: vejo o Twitter, faço a barba, dou uma olhadela ao Instagram, ajudo nos trabalhos de casa da Sofia, espreito o Facebook, ajudo a Sandra no almoço, falo no grupo do WhatsApp, limpo a sala, abro o email, despejo o lixo, ligo o Milenium, vou à janela e leio os sms. Sou uma espécie de Cruyff do jornalismo. Eu e todos nós.