Sobre os maravilhosos negócios infinitos

OPINIÃO14.07.201904:01

- Falemos de quê?

-Do valor das coisas.

- Quanto vale uma coisa?

- Vale o que Vossa Excelência queira pagar, parece-me.

- Sim?

- A não ser que um determinado Estado e governo, que tem as armas e as leis, já se sabe...

- ...assim são as democracias...

- ...a não ser que o Estado, dizia eu, excelência, determine um valor para as coisas. Um valor exacto, um valor por decreto.

- Pois.

- Porém, no mercado dos produtos livres, sim, algo vale o que o comprador estiver disposto a pagar.

- É assim nas artes, e nas muitas variantes de muitas artes.

- Isso mesmo.

- O mais importante é o seguinte, excelência: não há um valor absoluto. Um copo de água no deserto e um copo de água numa cidade europeia num dia normal, por exemplo. A diferença pode ser abissal. Podes não pagar nada por um copo de água, ser gratuito, ou então custar-te uma fortuna.

- Variação entre zero e muito.

- Isso mesmo.

- E Marx?

- Também.

- Valor do uso, valor da troca.

- Eu diria ainda, Excelência. Há um valor pessoal, subjectivo. E isso não é nada de desprezar. Por exemplo, este objecto foi oferecido pelo meu avô e por isso, para mim, vale uma fortuna. Pois sim, mas levo esta bela cruz que o meu avô me ofereceu a um contabilista dos metais e ele diz-me: isto não vale nada!

- Parvalhão!

- Exactamente, parvalhão! Besta quadrada! Etc.

- Mas o facto é que este objecto é feito de um material pobre, o metal mais comum do mundo. Não lhe dou dez euros por isso, diz o parvalhão.

- Vossa Excelência pode dar um soco tremendo no rosto exacto do senhor contabilista dos metais, mas talvez não adiante.

- Não.

- O seu avô não era avô dele e isso altera tudo.

- Pois. O sujeito é claramente o neto errado.

- Podemos, por isso, Excelência, lembrar o valor afectivo das coisas. Um valor que tem a ver com experiências que passámos com um objecto, por exemplo, e quem nos ofereceu, etc., etc.

- Sim, isso mesmo.

- E esse valor afectivo, tremendo, interior, quando nos viramos para fora, vale exactamente...

- ...zero.

- Um redondo zero.

- Zerinho, zerinho.

- Mas a questão mais importante, excelência, parece-me, além da afectividade, é o contexto.

- Exactamente. A arte do negócio é esta: se queres vender um copo de água, vais para perto de quem tem sede e para o deserto, claro.

- A questão é esta, Excelência: o bom negociante cria, se necessário, desertos artificiais.

- Desertos artificiais?

- Isso mesmo.

- Como assim?

- O bom negociante é um prestidigitador, um mágico dos bons.

- Sim?

- Ele faz com que olhemos para um lado enquanto o essencial está a acontecer exactamente no lado oposto.

- Um político?

- Ah, mais ou menos, mais ou menos. Pertencem à mesma especialidade.

- E a acção desses negociantes mágicos é...?

- Criar desertos artificiais, sim. Uma espécie de miragens negativas.

- O mágico negociante diz: veja, Excelência excelentíssima que quer comprar, veja, lá ao fundo: o deserto!

- E o comprador lá diz, com um ar extasiado: pois, pois, o deserto, lá ao fundo. É enorme. E seco. Estou a vê-lo!

- Enorme e seco, repete o negociante.

- E depois, de súbito: Vai precisar de água. Eu vendo-a. É cara, é certo, mas não há alternativa.

- E o comprador não tem olhos?

- Tem, claro. Mas todos temos olhos e vemos a linha do horizonte que não existe, vemos o sol a mexer-se à nossa volta e ele não se mexe nem um bocadinho, vemos uma vara dobrada dentro de água e ela esta direitinha.

- Chega. Entendo, Excelência.

- A arte é esta; o efeito óptico inverso: vender uma vara torta como se estivesse direita.

- Pois, isso mesmo, Excelência, isso mesmo.