Sobre a cultura de vitória
Contexto do jogo das águias em Munique mostrou as diferenças entre o Benfica de Jesus e o FC Porto de Conceição
O que é uma cultura de vitória? Poderiam ser avançadas algumas teses mas talvez seja mais fácil dizê-lo desta maneira: é ver os encontros do FC Porto na Liga dos Campeões. Ontem, em San Siro, os dragões abriram mais uma vez o livro das explicações. Cada hora e meia de jogo dos homens liderados por Sérgio Conceição é uma espécie de apontamentos Europa-América que simplificam teoremas que parecem complexos para outros. Dito de outra forma: o Porto europeu é uma equipa portuguesa que entra em campo a acreditar, sempre, que pode vencer o jogo, mesmo que seja inferior ao adversário.
Mas esta forma de pensar e jogar não nasce de forma espontânea. É um processo assente em dois pressupostos: tempo e coerência. O primeiro é facilmente explicável: chama-se Pinto da Costa, o presidente que trouxe a Europa à Invicta no século passado; o segundo são as decisões que afetam o presente mas, fundamentalmente, moldam o futuro: um treinador com percurso medíocre nas competições europeias raramente mereceu segundas oportunidades no passado. São decisões assim que ficam na memória e funcionam como uma espécie de alerta inconsciente - cada técnico que entre no Dragão já sabe ao que vai.
I STO é muito do que não acontece no Benfica. É curioso ler e ouvir vários altos quadros dos encarnados apontarem o Bayern Munique como modelo de gestão financeira a seguir quando talvez devessem, em primeiro lugar, olhar para dentro do País e perceber que o maior rival dos últimos 40 anos os ultrapassou na gestão desportiva. As águias despediram-se de forma abrupta da liderança individual mais longeva da história, cujo legado foi um clube com património mas com história mediana na Liga dos Campeões. Pode não parecer importante, mas quando Luís Filipe Vieira decidiu manter Rui Vitória após a época mais desastrosa de sempre do clube na Champions (a tal das zero vitórias, 1-14 e golos e dos 0-5 em Basileia) passou uma mensagem clara às gerações vindouras: a desejada grandeza do Benfica seria só para consumo interno. Esta mentalidade ganhou raízes, quer nos colaboradores mais próximos quer também nos próprios adeptos, que de uma forma ou de outra foram caucionando uma certa mediocridade.
Jorge Jesus poupou titulares em Munique
O regresso de Jorge Jesus, pela mão do ex-presidente, não foi mais do que a insistência no mesmo modelo: tentar ser grande dentro de portas mas sem ambições desmesuradas para lá de Badajoz. Os números não mentem: em oito épocas como técnico dos encarnados, JJ participou em 15 partidas fora de casa na Champions e só venceu três, diante de adversários modestos - Otelul Galati (1-0, em casa emprestada), Basileia (2-0) e Anderlecht (3-2).
Foi este caldo cultural que permitiu a Jesus encarar o jogo de terça-feira em Munique como uma derrota pré-anunciada, primeiro no discurso, depois no onze inicial. Porque é a sua forma de gerir mas fundamentalmente porque sabe que pode fazê-lo sem lhe cair o mundo em cima (interna e externamente). A maior diferença do Benfica de Jesus para o FC Porto de Conceição talvez seja mesmo esta: o treinador do FC Porto até poderia deixar de fora alguns titulares frente ao Liverpool (poderá fazê-lo em Anfield a pensar na receção ao Atlético Madrid) mas nunca admitirá publicamente que esse jogo é para esquecer. Porque ele próprio nunca se permitiria a uma menoridade dessas e muito menos Pinto da Costa. A cultura não é um mito.