Só vale bujardos

OPINIÃO05.07.202306:30

Vida mais difícil para os guarda-redes nos penáltis é um reflexo do futebol moderno: os mais fortes e favorecidos são sempre os beneficiados

R EZA a história que Alfredo Di Stéfano, estrela do Real Madrid dos anos 50 e 60 do século XX, não era muito adepto de comemorar golos marcados de penálti porque considerava desigual a disputa com os guarda-redes. Era um tipo de nobreza comum na era pré-industrial do futebol (quem não se esquece das imagens de Eusébio a cumprimentar os donos das balizas depois de um penálti concretizado?) e que naturalmente se perdeu com o tempo. Hoje seria estranho imaginar os melhores avançados do mundo não correrem desenfreados para a bancada em celebração de um pontapé a 11 metros de distância de uma  zona de 7,30 metros de largura e 2,44 metros de altura, mesmo que o sucesso dessa ação seja resultado de uma probabilidade estatística favorável a rondar os 75 por cento segundo um estudo publicado pela Instat em 2019.

Os pobres dos guarda-redes, a única posição no futebol onde se tem mais a perder que a ganhar, foram tentando, ao longo do tempo, contrariar o destino: à dança do esparguete de Bruce Grobbelaar no Liverpool dos anos 80 do século passado aos mind games do recente campeão do mundo argentino Emiliano Martínez, viu-se de tudo um pouco na difícil tentativa de impedir o inevitável. Não satisfeitos, no entanto, os reguladores e decisores do futebol foram mais longe quando obrigaram os guardiões a ter pelo menos um pé fixo na linha de golo no momento do remate para acabar com as defesas-Beto, aqui recordando as paradas do português do Sevilha na final da Liga Europa de 2014 frente ao Benfica (muitos adeptos queixam-se mais do árbitro desse jogo pela permissividade face ao adiantamento do guardião do que dos jogadores que falharam os penáltis). Nada me causa maior sentimento de injustiça no futebol do que assistir a um penálti repetido pelo VAR porque o guarda-redes defendeu com o calcanhar alguns centímetros à frente da linha.

Mas quando se pensava que já não seria possível prejudicar o trabalho dos homens das luvas, eis que o espírito choninhas volta a prevalecer nos gabinetes do International Board, agora proibindo qualquer tentativa de desestabilização, seja uma palavra, o bater nos postes, na barra ou nas redes antes de o adversário executar o penálti. Já lhe chamaram lei Antimartínez. Tudo a pensar no golo, mas mais uma medida a tirar o salero de um desporto que sempre provocou paixões, também, pelo jogo emocional dentro do próprio jogo.

Haverá uma altura no futuro em que teremos todos, nem que seja apenas momentaneamente, de nos voltar para o futebol de rua, uma escola de virtudes e de princípios éticos, para devolvermos a nós próprios alguns valores. Por algum motivo todos dizíamos nas nossas peladas: «Não vale bujardos!» Porque havia o sentimento de que a vitória teria de surgir pela técnica e por princípios mínimos de igualdade entre pares. Pode parecer apenas um detalhe, algo pouco importante e até um exagero o protesto, mas esta decisão de tirar armas aos guarda-redes no momento da grande penalidade é simbólico: reflete um futebol cada vez mais desequilibrado que beneficia sempre os mais fortes e os favorecidos pelas circunstâncias. Sejam os que têm mais dinheiro ou os que já estão em cima do cavalo. Não faltará o dia em que os guarda-redes ficarão proibidos de defender penáltis com as mãos.