«Só falta o Vieira»!...
Foi tema de debate, esta semana, o cântico da claque do Benfica - chame-lhe Luís Filipe Vieira o que quiser - no final do jogo com o Rio Ave. Foram várias as interpretações e as reações, uma das quais a do alvo desse cântico que se confessou triste pela ingratidão que a mesma traduz. Parecia uma criança acabada de chegar ao futebol e, portanto, ainda sem tempo para perceber que, no futebol, não há gratidão pelo passado, qualquer que ele seja, e o que conta são os resultados do presente. Mas, é evidente que Vieira não se sente frustrado pela ingratidão, porque ele sabe bem que no futebol que ele frequenta, e a que se adaptou de forma até sofisticada, não há lugar a esse tipo de sentimentos, e o que conta são efetivamente os resultados alcançados independentemente dos meios!
Entre parênteses diria que Vieira tem razão para se mostrar triste por essa manifestação de ingratidão. É que é mesmo ingratidão, que aliás não deixa de ser irónica. Na verdade, da tribuna da Luz, onde se destaca, como primeira figura, o presidente, nunca veio uma palavra de condenação vigorosa dos homicídios já ocorridos; pelo contrário, sempre se tem constatado uma proteção chocante. Daí que seja, realmente, injusto o cântico dirigido para aquela mesma tribuna, de onde já saíram outros e agora ... só falta (sair) o Vieira! O que é que esperava?
Por outro lado, aquele cântico não será interpretado por todos da mesma maneira, designadamente, para uns é um cântico de regozijo e, para outros, será um cântico ameaçador ou uma mistura dos dois Ou seja: regozijo por terem conseguido o afastamento do treinador e ameaça ou aviso de que o próximo a sair será o presidente.
Do meu ponto de vista, que não sou, como todos sabem, nem sócio do Sport Lisboa e Benfica, nem acionista da Benfica SAD, é para o lado que eu durmo melhor. Que me interessa a mim que a claque do Benfica mande embora o treinador ou o presidente. Não tenho rigorosamente nada a ver com isso. Porém, vejo este assunto para além do clube rival do meu, isto é, não sob o aspecto mais ou menos folclórico, mas como sintoma de uma mal de fundo, muito importante para o futuro dos clubes portugueses, designadamente, dos grandes clubes portugueses!...
Com efeito, alguém pode pensar que as sociedades anónimas desportivas portuguesas, designadamente, as mais importantes possam algum dia competir com as poderosas sociedades anónimas desportivas inglesas, italianas, alemãs ou espanholas (com as excepções, para confirmar a regra, do Real Madrid e Barcelona), quando a claque do acionista maioritário se gaba de ter ido o treinador ao mesmo tempo que ameaça que a seguir é ele que é posto andar se não houver os resultados desportivos que se desejam? E o mal não está em gabar-se ou ameaçar, mas sim no facto de as claques condicionarem o poder, por mais legitimo que ele seja do ponto de vista democrático. E, se há uns anos isso se podia admitir relativamente ao presidente do clube, hoje as pessoas esquecem-se, mas não se deviam esquecer, que o presidente do clube é o presidente da sociedade anónima desportiva - realidade bem diferente, pois no clube mandam os adeptos que são sócios do clube, e na SAD têm de mandar os acionistas, sejam eles adeptos ou não. E, ou aceitamos essa realidade, ou não podemos sequer sonhar com grandes feitos, porque temos muita matéria prima, mas não podemos fazer mais que a vender!...
Aliás, mesmo sem ir ao extremo do poder das claques, devemos reflectir se faz sentido que seja a assembleia geral do principal acionista - o clube - a condicionar a estratégia e objetivos da sociedade anónima desportiva do clube, que está sujeita a regras diferentes, e cuja estratégia devia ser definida pela administração, sob a autorização e controlo da assembleia geral de acionistas! Será possível que uma sociedade anónima desportiva que tem legislação própria e se encontra submetida ao Código das Sociedades Comercias pode funcionar de acordo com as regras do Código Civil, que tanto servem para os grandes clubes de futebol como para as colectividades de bairro onde a competição é o chinquilho ou a bisca lambida!...
Estarão neste momento alguns a pôr em causa o meu espírito democrático, mas a minha posição nada tem a ver com um espírito pelo qual lutei de acordo com o que me foi possível. Tem a ver sim que não acredito na democracia directa em nada, a começar pela sua aplicação no meu país, tendo em vista que algumas democracias directas foram e são as piores das ditaduras. Nas representativas, nessas acredito, apesar de, obviamente, também ter as suas imperfeições, por culpa dos seres humanos.
Quer queiram quer não, as grandes discussões sobre questões de fundo não podem ser discutidas aos gritos, com insultos e atropelos, e por vezes sob ameaça física, por massas onde a emoção se sobrepõe à razão. E, se isto, não se pode admitir na governance dos clubes, muito menos se pode pensar no que seriam as assembleias gerais de grandes sociedades anónimas onde estivessem todos os accionistas presentes! Será admissível que uma grande sociedade anónima, seja ela desportiva ou de outra natureza, deixe discutir na praça pública o pagamento do casamento da filha de um seu administrador, sem qualquer consequência? Claro que não. É ridículo que uma sociedade anónima seja tratada como se de um grupo de amigos se tratasse!
Era sob este ângulo, isto é, o ângulo do significado, que eu gostaria de ver tratada na comunicação social o cântico «só falta o Vieira», como amanhã pode ser entoado «só falta o Varandas» ou só falta o António ou o Francisco. E não digo propositadamente só falta o Pinto da Costa, porque os adeptos do Porto costumam dizer que só faz falta o Pinto da Costa! Porém, alguma comunicação social opta sistematicamente por tratar estes assuntos através de intérpretes fofoqueiros, ignorantes e similares, que gostam da intriga e do insulto, como forma de tapar a sua incompetência e cretinice. Mas os clubes e as televisões, que apenas se preocupam com audiências, gostam disto porque assim se entretém o pagode.
Eu percebo que enquanto esta cultura perdurar, os clubes, individualmente, não tenham coragem para propor ideias e soluções compatíveis com uma indústria e um espectáculo que envolve milhões, isto é, soluções objectivas e racionais. O que não percebo é que não façam um esforço, minimamente inteligente, para se sentarem à mesa e discutirem modelos de organização e gestão que interessam a todos e que, portanto, facilitam a mensagem que é necessária fazer passar junto dos adeptos. Só o consigo perceber no âmbito de um apego ao poder e da sua defesa a todo o custo. Não o consigo perceber no âmbito do amor ao clube, porque este só é credível quando acompanhado de medidas e soluções racionais para problemas que tem de ser resolvidos com objectividade e racionalidade. Se se ama o clube têm de se desenvolver ideias e tomar decisões para que ele perdure para além das pessoas que em cada momento o dirigem.
Foi aliás dentro desta concepção que eu disse que o meu tempo acabou, e que o disse sem azedume ou amargura. Mas também referi, e reafirmo, que o disse e digo com preocupação. Porque o meu tempo acabou, mas para outros também devia acabar, sobretudo para aqueles que não querem mudar de mentalidade e cultura. Para estes o meu tempo acabou mesmo. Mas se formos responsáveis, se estivermos todos no mesmo tempo de modernidade, racionalidade, amor a cada um dos respectivos clubes, e desapego ao poder, talvez evitemos que as massas do Benfica, do Sporting ou do Porto, um dia destes entoem, em conjunto, só falta a SAD, só falta o clube!...