Simone e os outros

OPINIÃO16.10.201904:02

Numa semana de grandes feitos desportivos começo pela pantera negra perfeita, quer dizer, a Simone Biles. Na ginástica artística feminina haverá um antes e um depois desta extraordinária atleta afro-americana de 22 anos que saiu dos Mundiais de Estugarda coroada como a maior da história:  25 medalhas (19 de ouro) e mais dois movimentos inéditos (um duplo-duplo e um tripo-duplo) à espera de nomeação personalizada (como é da tradição) pela Federação Internacional de Ginástica. Não sei o que gosto mais nesta pequena deusa (1,42 m) de ébano nascida em Columbus, Ohio, que enfeitiça pela potência, coordenação e graciosidade dos movimentos felinos quase sempre providos de um grau de dificuldade inacessível às adversárias. Talvez o sorriso largo e franco de miúda normal, que mascara um início de vida terrível (mãe toxicodependente, passagem por lares de adoção, abusos sexuais, um irmão acusado de homicídio…) e quase nos faz esquecer que as ginastas como ela, obcecadas com a perfeição, não têm uma vida normal (nem agora nem antes) como as miúdas da sua idade.

«Não sorri», dizia-lhe a treinadora romena Marta Karolyi, que considerava sorrir um sinal de falta de rigor e de empenho no treino. Ainda bem que Simone não foi na conversa porque seria um crime refrear um sorriso como o dela, largo e generoso; sorriso esse que obscurece no meu baú de memórias e afetos a imagem da romena Nadia Comaneci e das soviéticas Olga Korbut e Ludmilla Tourischeva que segui a preto e branco nas Olimpíadas de Montreal (1976), completamente fascinado pelo contraste entre aquilo que faziam no solo e nos aparelhos e o ar famélico, duro e por vezes alheado que todas traziam estampado nos olhos e nos corpos secos e contidos.

QUÉNIA A DOBRAR

Da Simone para o Quénia em passada larga: Eliud Kipchoge primeiro, em Viena, Brigid Kosgei no dia seguinte, em Chicago. Ele tornou-se o primeiro homem a correr a maratona em menos de duas horas, pouco importando para o caso que tenha sido empurrado pelos milhões da Ineos e da Nike, pelo carro corta vento com vários artefactos xpto e quatro dezenas de lebres generosamente subsidiadas. O facto que releva aqui é que o Homem (esqueçamos nomes) fez cair mais um muro que a própria ciência médica julgava impossível de superar - como os 9,58 de Bolt nos 100 metros. Quando leio que o bom do Eliud correu 42 quilómetros à média de 17 segundos por cada cem metros… sinto-me à beira de um colapso cardíaco e tenho de passar rapidamente a Brigid Kogsei que, na Maratona de Chicago, rapou mais de um minuto ao velho (de 16 anos) recorde de Paula Radcliffe. Uma proeza a que o presidente da Liga, Pedro Proença, assistiu literalmente in loco. Em ambos os casos, e não subvalorizando a importância dos cachets e dos prémios por objetivos (olha não), gostaria de acreditar no que Eliud disse: «Não vou [a Viena] pelo dinheiro, vou para ver onde estão os limites humanos.» Citius, Altius, Fortius. No fundo, a essência da competição.

AH LEÃO

Termine-se com a marca de 700 golos alcançada por Cristiano no Olímpico de Kiev e não em casa, como (percebeu-se) tanto queria. Ronaldo é uma lenda viva do desporto e esse é o melhor cumprimento que se pode fazer a um atleta em atividade. Vemo-lo e estamos a ver história em movimento. Gostaria de voltar a sublinhar aquilo que considero o traço quiçá mais distintivo da carreira de Ronaldo: o grau de exigência que ele sempre se impôs nas escolhas que fez. Bem refletido no facto de ter atingido este registo estratosférico de golos a competir nas quatro ligas mais difíceis e elitistas do mundo - A Liga dos Campeões, a Premier League inglesa, a Liga Espanhola e a Série A italiana. Não esquecer, portanto, que a esmagadora maioria dos golos de CR7 (só fez 5 em Portugal) foram conseguidos a defrontar ano após ano as melhores equipas, as melhores defesas e os melhores guarda-redes do mundo. Sim, com Cristiano nunca houve facilidades, ligas medianas ou fáceis (apenas uma época sénior em Portugal) nem muitos golos em amigáveis ou particulares - apenas 42 contra os 526 de Pelé, por exemplo. Os números dele foram conseguidos na elite, a competir contra a elite, e em jogos a doer. É bom não esquecer isso.

Por falar nisso, não resisto a lembrar que desde a última segunda-feira Cristiano Ronaldo sozinho tem mais golos em jogos oficiais com Portugal (78), do que os três maiores futebolistas sul-americanos juntos (77). Falo de Pelé (26), Maradona (15) e Messi (36). Vale o que vale (as seleções sul-americanas têm menos jogos de qualificação que as europeias), mas não deixa de impressionar.

Jorge Jesus, novo fôlego

Indiscutivelmente de qualidade o trabalho de Jorge Jesus no Flamengo. Em três meses pôs o Mengão a jogar mais ou menos o dobro do que jogava com Abel Braga. Ontem ouvi Ricardo Rocha, antigo central canarinho do Sporting e do Real Madrid, dizer que o Flamengo de Jesus é «a melhor equipa» que viu «no Brasil nos últimos dez anos, pelo menos». O Mengão está cada vez mais destacado na liderança: com Jesus no banco, ganhou 29 pontos em 14 jornadas aos principais rivais: 16 ao Palmeiras e 13 ao Santos. É, pois, muito natural que o Fla acabe por ganhar o campeonato (pela primeira vez desde 2009); e por aquilo que se tem visto do Grêmio, também será muito natural que o Flamengo confirme dentro de uma semana no Maracanã a enorme superioridade futebolística que impôs à equipa de Renato Gaúcho no jogo da 1.ª mão (1-1) da meia final da Libertadores. Se ganhar o Brasileirão e chegar à final da Taça dos Libertadores (onde o Fla não põe o pé desde 1981), a reputação de Jesus ganha um novo e importante fôlego que lhe permitirá, porventura, receber convites interessantes do futebol europeu e apanhar o comboio que, se calhar, não devia ter perdido há cinco ou seis anos - não, não estou a falar de Portugal.