Sentir o Benfica como nunca, outra vez

OPINIÃO17.05.202206:55

Encarem o futuro do Benfica como questão de vida ou morte. Não há tempo a perder. Bola no pé, faca nos dentes, mais coração em tudo

«As pessoas esquecem-se daquilo que disseste e do que fizeste, mas não esquecem aquilo que as fizeste sentir. E tu, Mark Noble, fizeste-nos sentir muito especiais, porque és um de nós»

Omomento alto do meu fim-de-semana desportivo aconteceu num lance sem bola no Estádio Olímpico de Londres pela voz de Ben Shephard, jornalista da ITV e adepto do West Ham que ali estava para uma ocasião especial. Foi a despedida de Mark Noble, lenda viva do West Ham, atleta do clube desde os 13 anos, jogador da equipa principal desde os 17. Despediu-se do amor da sua vida aos 35 anos, perante um estádio lotado e em lágrimas, dele e dos adeptos. Não há jogador que tenha vestido a camisola do West Ham mais vezes. Ajudou a equipa a regressar à Premier League, esteve lá nos momentos mais difíceis, despediu-se de Upton Park e deu as boas vindas ao novo estádio. A história do West Ham não seria a mesma sem ele. Comovi-me com a tristeza do fim e com a felicidade de saber que ali se escreveu um capítulo final como deve ser. É disto que se fazem alguns dos meus fins-de-semana nos dias que correm. Muitas vezes nestes últimos anos dei por mim embevecido a olhar para um ecrã qualquer, a admirar as histórias felizes dos outros, enquanto pensava: porque é que não somos nós?

Esta cobiça seria mais fácil de engavetar no compartimento das impossibilidades se o meu clube não fosse o Sport Lisboa e Benfica, que tem tudo ao seu alcance mas continua a parecer incapaz de lá chegar. Mark Noble. Fiquei preso a esta ideia do atleta que se confunde com o clube, que lhe dá uma vida inteira e se despede agradecendo e dizendo que espera ter enchido os adeptos de orgulho. Admirável. O que fica é aquilo que o futebol nos fez sentir. É certo que a época que agora termina foi em quase tudo desastrosa, mas deu-nos alguns momentos desses, dos tais que recordamos por aquilo que sentimos, dos que evocamos com orgulho inabalável. A vitória frente ao Barcelona, as bancadas em Anfield ou em Amesterdão, a bravura da equipa nesses momentos, o talento e a fúria do Darwin que tantas vezes levaram uma equipa inteira às costas. Sim, houve momentos em que nos sentimos vivos, em que houve Benfica. Mas será que alguma coisa perdurará desta época? Só mesmo o medo de que o desastre se possa repetir. Esta travessia do deserto tem demonstrado que é possível piorar. O balanço é fatal: chegamos a Maio com uma equipa sem identidade nem ídolos, a caminho de lamentar 3 anos sem títulos, prestes a vender o seu jogador mais valioso porque, no final de contas, este país predestinado ao turismo é também uma estância balnear para a carreira dos melhores futebolistas. O problema da fome de títulos, por muito que os adeptos a tenham, é quando tudo à nossa volta parece em défice de nutrição.

Mark Noble. O nome persegue-me desde ontem. Quantos destes tivemos no Benfica desde o início do século? Quantos destes temos hoje? Quantos teremos nos próximos 20 anos? Bem sei que o West Ham não é um portento desportivo com uma imensa sala de troféus, mas o exemplo do seu capitão pode e deve inspirar-nos a procurar um Benfica maior, a procurar escrever uma história que comece hoje e dure mais do que o tempo que nos é imposto pelos ciclos do futebol moderno.
 

Adeptos encarnados em Anfield, para o jogo da Champions com o Liverpool: um momento da época que representa o que é ‘sentir o Benfica’ 


Qual Mark Noble qual quê. Tropeço numa notícia de um diário espanhol. Diz que o Real Madrid considera um substituto para Benzema e está atento ao Henrique Araújo. Constato o orgulho de alguns consócios, mas a mim o tema causa a maior das depressões. Observadores de jogos fazem fila para ver o Diego Moreira. Seguir-se-á o anúncio de uma nova cláusula de rescisão, que aparenta repelir as aves de rapina mas na verdade colocará toda a gente de olhos postos em mais um talento da formação. Precisamos do dinheiro e de ter as contas em dia, dirão alguns enviados do FMI ao Estádio da Luz. Especulamos sobre qual será o valor aceitável para deixar sair o Gonçalo Ramos como se fôssemos administradores da SAD e não pessoas especializadas única e exclusivamente em celebrar golos do Gonçalo Ramos. Perdemo-nos e perdemos mais vezes por causa disso. Já sei, já sei. São as inevitabilidades do clube vendedor. Somos vítimas e culpados deste futebol higiénico feito de tantos balancetes imaculados quantas exibições de causar vergonha. Tanta saúde financeira do clube deixa-me doente.

Um Benfica maior é o Benfica que não lembraremos pelo que foi dito ou pelo que se disse, e muito menos pelas contas certas, mas pelo que nos fez sentir. Para chegarmos ao Benfica Ideal, até aceito que pensemos a 2 anos e não a 10 ou 20, mas só se for para tentar algo novo. Precisamos hoje, talvez mais do que nunca em toda a história do clube, de quem pense e aja diferente, de quem seja consequente, de quem traga gente nova a sério para dentro do clube, de quem corra riscos mesmo sabendo que vai aborrecer os accionistas, de quem seja incómodo para todos os que querem o Benfica de rastos, de quem revolucione a organização sabendo que só mudando muita coisa neste Benfica se conseguirão resultados diferentes e condizentes com a grandeza do clube. Precisamos desesperadamente de quem faça tudo, mas mesmo tudo por um ideal de grandeza. Precisamos de gente - um presidente e quem mais o acompanhar - que se dedique de forma obsessiva, egoísta, incansável e furiosa a levar o Benfica a onde mais ninguém levou o clube. É possível ser muito mais. É possível ser tudo isto e conservar os valores que tornam o Sport Lisboa e Benfica um clube tão diferente dos demais, a inveja que os outros não conseguem evitar nem mesmo quando vencem. O Benfica precisa desta angústia tornada convicção, precisa do descontentamento que nos aproxima da perfeição, precisa de quem perca o sono para que todos nós possamos passar noites acordados a celebrar os títulos que deviam ser nossos.

Se queremos mais, é preciso abandonar, um por um, os guiões amplamente conhecidos que fizeram do Benfica o clube com maior volume de vendas no futebol mundial, e pouco mais do que isso. Basta, por uma vez, de tomar decisões que engordam os cofres e encolhem o clube. Deixem o novo treinador cultivar o talento dos jovens para sermos nós a colher esses frutos. Digam aos clubes ricos que não querem o dinheiro. Acompanhem os scouts até à saída do estádio. Os miúdos que fiquem cá até serem velhinhos. Façam-nos trabalhar mais do que todos os outros da sua idade, e eles vão sentir que é aqui que cumprem todo o seu potencial. Insistam neles, acreditem em todos, acreditem tanto quanto os adeptos. Juntem-lhes meia dúzia de futebolistas à margem de qualquer dúvida. Podem custar uma fortuna, desde que venham para jogar futebol de seta apontada à baliza e não mais uma variante de futebol-andebol para nos matar de tédio. Não me digam que estou a sonhar acordado. Presidente, diretor desportivo, seja lá quem for que me estiver a ler e tiver algo poder neste Benfica: saibam que defender o clube é renovar drasticamente a sua ambição. Não me venham com anos zero, que amanhã se calhar já não estamos cá. Encarem o futuro do Benfica como uma questão de vida ou de morte. Não há tempo a perder. Bola no pé, faca nos dentes, mais coração em tudo o que se fizer. Vivam um bocadinho. Pisem o risco. Gastem o dinheiro. Não tenham medo de alguma loucura. Suplico-vos: façam-me sentir o Benfica como nunca, outra vez.