Sem tempo para brincadeiras

OPINIÃO30.08.202206:30

No Benfica mudou muita coisa, e para melhor, mas nenhuma me entusiasma mais do que Roger Schmidt

AS semanas passam e a confirmação dos piores receios tarda em chegar. O Benfica continua a vencer jogo após jogo, juntando aos bons resultados duas mãos cheias de exibições seguras e vistosas, com os reforços a mostrarem por que motivo foram contratados, os jovens jogadores a saberem agarrar a oportunidade, as referências a prosperarem num novo onze, e alguns velhos conhecidos a saberem reinventar-se, assim renovando a esperança dos adeptos, que bem precisavam. Mesmo assim parece que não chega. Depressa a goleada ao Dínamo Kiev foi reduzida a mera banalidade, multiplicando-se as análises que explicam o sucedido. Afinal parece que o Benfica ainda não terá tido um teste a sério. É verdade que a essa vitória categórica se seguiu uma visita ao Estádio do Bessa, com mais 3 pontos conquistados de forma contundente por um onze titular que se viu privado do seu capitão e principal esteio da defesa, isto frente a um adversário em excelente momento de forma, que ainda por cima é historicamente conhecido por causar problemas ao Benfica. Certo, mas ainda assim… quando é que começam os testes a sério?

Devemos olhar com as maiores reservas para esta série de jogos sucessivos a brincar, que curiosamente deram ao Benfica: uma compensação monetária na ordem das dezenas de milhões de euros; as melhores assistências da temporada no futebol português, correspondendo a perto de metade dos adeptos que visitaram estádios de futebol em Portugal esta época, com margem para continuar a crescer; o acesso direto ao maior palco mundial do futebol de clubes; uma vantagem pontual sobre os principais adversários na competição interna, e finalmente uma dinâmica de vitória como mais nenhuma equipa portuguesa neste momento.

Se alguém ganhou alguma coisa? Rigorosamente nada, e todos os benfiquistas sabem isso. Entusiasma, e muito, mas só vale se chegarmos ao fim e tivermos atingido todos os objetivos. O que não é, definitivamente, igual a considerar que tem faltado ao Benfica um teste a sério quando alguns dos maiores testes falhados em épocas anteriores - a consistência exibicional, a mítica nota artística, a agressividade colocada naquilo que se faz em campo e a inteligência e o virtuosismo para desbloquear jogos em provas de regularidade, têm sido demonstrados de forma tão convincente. Tomemos como exemplo a época passada, que começou com uma série de vitórias, mas esteve sempre muito longe deste fulgor exibicional, atraindo mais pelos resultados do que pela forma como esses resultados foram conseguidos. Felizmente os benfiquistas não são conhecidos por aceitar os resultados em detrimento do resto.
 

Benfica conseguiu no Estádio do Bessa a sétima vitória consecutiva (em sete jogos oficiais) e está a entusiasmar os adeptos encarnados


Mas, mesmo que eu subscrevesse a tese de que faltam testes a sério a este Benfica, registaria com agrado que a equipa tem sabido encarar cada jogo com a máxima seriedade, e colhido frutos sem quaisquer outros salamaleques que não a qualidade do jogo jogado. Os jogos têm tido os seus casos, mas ninguém tem feito caso disso. É ótimo quando o futebol se sobrepõe aos outros temas. Digo isto com a maior sinceridade: não há nada melhor do que chegar ao fim de um jogo do Benfica, celebrar uma vitória inquestionável e ter até dificuldade em recordar quem foi o árbitro. Pode faltar quase tudo no que toca aos objetivos desportivos que norteiam o Benfica, mas, perante aquilo que se viu até aqui, é inegável que está aqui uma equipa. E, pelos vistos, alguns dos tais jogos a brincar já se revelaram perigosas cascas de banana para FC Porto e Sporting.

Mudou muita coisa, e para melhor, mas nenhuma me entusiasma mais do que Roger Schmidt. O plantel do Benfica não sofreu exatamente uma revolução, continuando a incluir nos titulares alguns jogadores que eram considerados parte do problema. Foram feitas algumas contratações, mas quando olhamos para o onze crónico do alemão vemos apenas dois novos jogadores, Enzo e Neres. No entanto, tudo mudou. Schmidt parece ter conseguido o mais importante em muito pouco tempo: unir o plantel em torno de uma ideia de jogo que rigorosamente todos parecem compreender. Não precisou de nos explicar grande coisa. Deixa que o futebol fale por si. Os becos e ruas sinuosas em que as dinâmicas de ataque nos enfiaram ao longo das últimas épocas são uma memória cada vez mais distante.

Schmidt disse que queria praticar um futebol atrativo e já toda a gente percebeu o que queria dizer. Explicou que queria tirar partido dos ativos do plantel, da formação aos atletas com contrato, e assim fez: Ramos continua a marcar, Henrique Araújo espreita, Florentino ressurgiu na posição de onde nunca devia ter saído para se afirmar como um dos melhores jogadores da liga portuguesa neste arranque de temporada. João Mário parece ter encontrado uma energia que não se via nele desde, bem, não sei se alguma vez vi João Mário jogar tão bem. De resto, o plantel parecia e continua a parecer um pouco curto, mas as soluções vão surgindo sem grande turbulência. É esperar que Lourenço Coelho consiga fechar este mercado de transferências em beleza, prosseguindo o trabalho competente que tem sido feito.

Os adeptos precisavam de voltar a confiar num treinador, e depressa. Schmidt conseguiu isso. Valor tangível, impacto imediato. O futebol do Benfica procura a baliza do primeiro ao último minuto, sem pestanejar. Chegado à sala de imprensa, o treinador do Benfica evita as rasteiras dos jornalistas sobre as tramas do futebol português, responde assertivamente quando tem de o fazer e vai dando lições de civismo e cultura desportiva. Sorri educadamente quando provocado e segue em frente, preferindo a objetividade do seu trabalho. Parece óbvio porque devia ser sempre assim, mas raramente o futebol em Portugal se comporta desta forma, e também por isso era importante que o clube trouxesse alguém desprovido de vícios e narrativas gastas. Schmidt ainda não ganhou nada e pode até acabar por desiludir, mas para já é inatacável. Passou no primeiro teste a sério, e o mais importante. Não está aqui para brincadeiras.