Ronaldo tem de sair da bolha
O capitão parece viver em estado de negação. Mas se entender o contexto ainda poderá sonhar com aquele golo aos 90+4’...
É uma das imagens mais poderosas que vi até agora neste Campeonato do Mundo: uma fileira interminável de fotojornalistas virados para o banco de suplentes de Portugal enquanto tocava A Portuguesa antes do apito inicial do Portugal-Suíça dos oitavos de final. Motivo: Cristiano Ronaldo ia começar o jogo no banco de suplentes. O momento, cristalizado por lentes profissionais, seria mais tarde objeto de um grande equívoco, o da alegada hierarquia da importância dos personagens. Acredito que para os mais chegados ao capitão da Seleção aquele foi um sinal claro e inequívoco de CR7 ser mais importante que os restantes jogadores, mas a esses atrevo-me a dizer o quão enganados estão, pois que aquele era apenas o valor da notícia e que todos os fotógrafos, sem ainda o saber, estavam a registar uma viragem histórica, ou para citar o jornal italiano La Gazzetta dello Sport, Aquele que acabou com a era Ronaldo, título acompanhado com a fotografia de Gonçalo Ramos.
É pena que uma das melhores exibições de sempre de Portugal em grandes competições tenha ainda este lastro sobre o que é, o que foi e o que será Cristiano Ronaldo na Seleção Nacional. É um elefante permanente na sala, de difícil gestão, situação para a qual o avançado pouco ou nada tem ajudado. Os colegas não o revelam, claro, mas quem anda nisto há alguns anos nisto percebe, seja pela linguagem corporal, pelas omissões no discurso ou pela expressão facial durante as declarações, da nuvem cinzenta que tapa os raios solares de uma goleada. CR7 estava zangado por ter sido suplente? Óbvio e natural (quem não fica?), mas é condenável que o capitão da equipa (é bom lembrar que recebeu a braçadeira de Pepe quando entrou) tivesse sido o primeiro a abandonar o relvado enquanto os colegas ainda celebravam com os adeptos ao som de A Minha Casinha dos Xutos e Pontapés. A Ronaldo não se pede sorrisos falsos ou demonstrações forçadas de carinho, apenas nobreza e a humildade que os grandes líderes devem demonstrar, mesmo em situações de ego ferido.
Nos últimos meses tem sido esse o maior problema: Cristiano numa luta contra si mesmo. Porque pela primeira vez na carreira ele debate-se com o dilema de não conseguir calar as críticas com bons desempenhos desportivos. O Ronaldo de 2022 está muito longe do Ronaldo de 2020 ou até de 2021 e isso está a ser evidente neste Campeonato do Mundo. Antes do arranque da fase de grupos foi defendido neste mesmo espaço que ele deveria ser o titular porque era o melhor ponta de lança da Seleção, mas os jogos frente a Gana, Uruguai e Coreia do Sul mostraram o contrário - um avançado que não garante profundidade, pouco acrescenta ao jogo de posse, sem rasgo e, fundamentalmente sem golo, pois que apenas foi capaz de rematar apenas duas vezes à baliza, um deles de penálti. Muito pouco.
Ainda é cedo para dizer que é o ocaso de um deus do futebol, porque um superatleta não desaprende assim tão rápido. Mas os sinais que surgem para o exterior parecem revelar um Cristiano Ronaldo sem capacidade de se adaptar à mudança, como se vivesse em negação. E a ideia sai reforçada quando ouvimos os desabafos de pessoas mais chegadas, sugerindo que o madeirense vive numa bolha que o afasta da realidade - e a realidade é tão simples quando esta: Ronaldo já não tem os recursos que fizeram dele o melhor jogador do mundo e o melhor jogador português de todos os tempos.
É pena, também, que nestes tempos maniqueístas e de polarização, qualquer crítica seja associada à ingratidão, infantilizando quer tentativa de discussão séria. Tal como em qualquer atividade, a gratidão é um sentimento para a posteridade; o momento é que importa em nome dos superiores interesse coletivos. Se fosse por gratidão, Fernando Santos teria convocado Éder para o Mundial-2018, dois anos após o pontapé para a eternidade em Paris.
Ronaldo teve o azar de ser muito novo na era dos Figos e Rui Costas e muito velho no auge dos Bernardos e na explosão dos Félix. Mas acredito que ainda pode vir a ter um papel importante no Catar, desde que consiga entender o contexto. Porque ainda é possível marcar o tal golo aos 90+4’ numa final frente à Argentina de Messi. Se alguém o merece, é ele.