Revolução em banho-maria
Durante o Europeu de França, que Portugal venceu por ter aprendido a arte de ‘jogar bem’, o Diário de Notícias publicou vários artigos do jornalista espanhol Santiago Segurola que li com interesse. Num deles, sobre Cristiano Ronaldo e os «felizes novos pretorianos», abordou a oportunidade da mudança registada na seleção lusa e enalteceu a inclusão de jovens praticantes com mais qualidade de formação e execução e mais sólida cultura tática.
Não sendo fácil ser Cristiano Ronaldo, escreveu ele, também não deve ser fácil jogar com ele. Porquê? Demasiada exigência, demasiada atenção, demasiada responsabilidade.
No essencial, verifica-se que o futebol da Seleção teve de mudar por imposição do seu capitão; e teve de mudar em vários planos, devendo destacar-se a feliz coincidência de, a par da luz que sempre iluminou a figura ímpar do melhor do mundo e nos permitiu enxergar um futuro bem mais esperançoso, de que a espantosa vitória em 2016 pode ter sido o primeiro sinal, a Federação Portuguesa de Futebol, sob a presidência de Fernando Gomes, ter aceitado liderar tão aliciante desafio.
Assentou as fundações do novo edifício organizativo no saber, na competência, no rigor, na inovação e, sobretudo, na credibilidade, unanimemente reconhecida pela sociedade futebolística mundial que considera a FPF um caso de referência, a imitar. Hoje, olha-se para a capacidade empreendedora federativa e retém-se a sensação de se viver numa ilha de sonho em contraposição ao sufoco provocado pelo extenso deserto de ideias que identifica a realidade do setor profissional, retratada na deprimência das assembleias da sua Liga.
Segurola esperava mais de «Moutinho, Veloso, Coentrão e companhia», uma geração que «sempre prometeu mais do que ofereceu», mas Portugal foi capaz de fazer o «render da guarda» e lançar jovens que fizeram o seu caminho com personalidade e não desanimaram «perante o peso das críticas iniciais e a gigantesca sombra de Cristiano Ronaldo».
A revolução funcionou bem para Portugal e para o próprio Cristiano, o qual, segundo o conceituado jornalista espanhol, passou a estar «mais bem acompanhado do que nunca». O que dá sentido às discussões sobre a necessidade de rejuvenescimento nas convocatórias, quer na idade, quer na mentalidade. Por razões que não alcanço, porém, os selecionadores, quase todos, sempre lidaram mal com esta questão e o atual não foi a exceção que confirma a regra.
Fernando Santos mudou o que julgou importante mudar e já se sabe como é: a razão adormece sempre ao lado de quem ganha e ele conseguiu ganhar o que ninguém alguma vez sonhou.
Antes do recente jogo com a Bélgica, em Bruxelas, o antigo guarda-redes De Wilde, que defendeu a baliza do Sporting, estabeleceu uma comparação pertinente, quase provocatória: Portugal tem bons jogadores, claro, mas a tarefa de Cristiano continua mais complicada do que a de Courtois, para ele o expoente máximo da equipa belga, pela razão simples de não dispor de apoiantes com a excelência de Hazard, De Bruyne ou Lukaku. Aceita-se o conceito. Nota-se a falta de jogadores com o poder de desequilibrarem, de fazerem a diferença, de tornarem o coletivo mais autónomo, sem jamais se perderem no caminho na ausência orientadora da sua ‘estrela polar’.
Em 2016, nas suas crónicas, Santiago Segurola destapou uma curiosa semelhança. Na análise entusiasmada que fez sobre o Portugal campeão escreveu o seguinte: «Não houve momento mais metafórico no Euro do que o desaparecimento de Moutinho, sem dúvida um excelente jogador, da equipa titular. Essa decisão de Fernando Santos mostrou ao mundo futebolístico o render da guarda na seleção portuguesa. Foi algo de rápido, inesperado e eficaz.»
E concluiu: «De Espanha observamos essa mudança com atenção e não sem uma ponta de inveja.»
Em 2018, a dez dias do pontapé de saída do Mundial da Rússia, admitem-se indícios de que os espanhóis tomaram o assunto em devida conta, enquanto por cá se teme um certo abrandamento nesse processo de mudança. Ou seja, ao calor da revolução necessária sobreveio esperado e natural arrefecimento. A revolução continua, sim, mas… em banho-maria. É complexo. Nem é por causa de Moutinho, também eu convencido de que a sua influência neste grupo corresponde a um trabalho de casa que está por fazer. É mais a defesa, como escreveu ontem Alexandre Pais, em Record, recordando o exemplo de Ricardo Carvalho que rebentou ao terceiro jogo no Europeu de França e colocou ponto final na carreira.
Com Pepe (35 anos) e José Fonte (34), não há equilíbrio nas alternativas, «por experiência a mais ou experiência a menos». É uma evidência: Bruno Alves (36) e Rúben Dias (21)…