Que a Rússia faça esquecer a Segunda Circular!
1 - Os bons espíritos - isto é, os que gostam sempre de generalizar para não terem de correr o risco de pôr nomes aos bois - andam para aí a dizer que o futebol português atravessa tempos de vergonha, mas que felizmente vai começar o Mundial para nos distrair deles. Ora, nem é o futebol português que atravessa tempos de vergonha, nem o Mundial pode e deve servir para nos distrair deles. Quem atravessa tempos de vergonha são o Benfica e o Sporting, dois dos maiores clubes portugueses, mas apenas eles. E, fora a já de si vergonhosa luta interna do presidente sportinguista contra o próprio clube, as gravíssimas suspeitas de corrupção de jogos e de jogadores que recaem sobre os dois clubes lisboetas, os indícios já recolhidos, as escutas divulgadas, as confissões recolhidas, os comunicados das autoridades judiciais sobre o que está em investigação, as medidas de coacção decretadas ou a dimensão inteiramente nova e escandalosa dos factos sob suspeita, impõem que, com ou sem Mundial, o assunto não fique afastado dos holofotes, um dia que seja. Que a justiça e o jornalismo continuem a cumprir a sua função e o seu dever, não aproveitando o pretexto do Mundial para fazer descer um pudico manto de silêncio, uma espécie de tréguas sobre as questões vergonhosas, que a Segunda Circular bem agradeceria.
2 - Dou comigo a pensar, por razões objectivas e outras não tanto, que esta é provavelmente a Selecção que mais me motiva desde há muito tempo. É razão objectiva aquilo que parecer ser consensual: do ponto de vista de qualidade em quantidade, estamos, talvez, perante a melhor Selecção desde há muito. É razão subjectiva o facto de esta ser a Selecção alvo de menor histeria patriótica ao velho e hipócrita estilo-Scolari, das bandeirinhas nas janelas e as criancinhas equipadas à Selecção, enquanto o patriota importado facturava milhões a vender patriotismo em campanhas publicitárias.
Estritamente do ponto de vista futebolístico, não parece restarem muitas dúvidas de que a versão 2018 da Selecção portuguesa é claramente superior à versão de 2016 - que, todavia, se sagrou campeã europeia. Pode ser que não se chegue nem perto do resultado de então, mas o resultado de então, sejamos justos, foi feito de muita sorte e grande conjugação astral: uma marcha até à final em que evitámos todos os grandes por sucessivas esquivas do destino, uma final ganha contra a lógica do jogo e graças a um pontapé de um jogador que jamais antes ou depois fez ou fará igual, e um título conquistado ao longo de sete jogos em que apenas um foi vencido durante o tempo regulamentar. Nunca mais se repetirá nada igual. Esta equipa tem mais soluções, mais futebol, melhores jogadores que parecem conhecer-se melhor, e, sobretudo, dá a sensação de depender menos da sorte e mais do talento que sabe que tem. É verdade que permanece, como já escrevi, uma irritante e crónica dificuldade em jogar para o golo: não é o último passe, é o último remate. Excepção feita a Ronaldo, é claro, porque esse não faz nunca cerimónia e, às vezes devia fazê-la: Ronaldo, até porque é o capitão, vai ter de perceber que esta já não é a equipa do melhor do mundo e mais dez, é outra equipa com jogadores que também sabem rematar e são capazes de marcar golo, se bem assistidos. E também sabem marcar livres, não havendo razão para que ele tenha o absoluto exclusivo da cobrança de todos os livres da Selecção, aliás com resultados que a estatística não recomenda. Contra a Argélia, Ronaldo ficou a dever a Portugal o 2-0, se tem assistido Guedes para um golo facílimo, em lugar de tentar ele um golo impossível; mas, depois, até conseguiu, num cruzamento perfeito, fazer estrear Bruno Fernandes, num golo de cabeça, igualmente perfeito.
Começar bem contra a Espanha será importante, claro. E não perder será começar bem. Mas, para mim, o jogo mais perigoso e decisivo, nesta primeira fase, será o segundo, contra Marrocos. Aí vai ser preciso jogar para ganhar... e ganhar.
3 - Como equipa a apoiar, adopto o Irão. Não apenas por ser treinada por um português, mas porque Carlos Queiroz tem razão: porque é boicotado por todos, FIFA incluída, a mando do idiota do Trump. Afinal, futebol tem a ver com politica ou não?
4 - Os portugueses que forem à Rússia e não se limitarem a ir aos estádios, vão descobrir um país fascinante, muito longe dos arquétipos de sub-desenvolvimento que a propaganda politica ocidental persiste em vender. A Rússia investiu a sério neste Mundial e esse investimento, de que me dei conta há um ano em viagem pelo país, vai estar à vista nas várias cidades que o vão acolher. É preciso é viajar com olhos de aprender e sem preconceitos - como sempre, aliás, se deve viajar. Pela minha parte, estarei lá, mesmo no final do Mundial, mas apenas breves dias em S. Petersburgo, e não para ver futebol e sim para ouvir música. Porque, apesar do Mundial, a Rússia não deixa de ser o que é e de manter a grandeza que tem noutros domínios.
5 - Creio que nem sequer tinha passado uma hora sobre um comunicado do SL Benfica que chamava ao Jornal de Notícias uma ‘Associação de Malfeitores’, devido a uma notícia do jornal, quando um comunicado da Procuradoria-Geral da República (pelos vistos, parte da dita associação de malfeitores), vinha confirmar, ponto por ponto, toda a notícia do JN, indo mais longe ainda e esclarecendo que «se indiciava suficientemente» que uma sociedade informática, a «pretexto de uma suposta prestação de serviços informáticos ao SLB», cobrara 1,9 milhões de euros, com «o único propósito de retirar dinheiro do Benfica SA». Ou seja, de criar um saco azul, para fazer circular livremente dinheiro do Benfica. Uma semana depois de vários jogadores do Marítimo virem declarar perante a SIC que tinham sido aliciados para perder um jogo contra o Benfica. E isto é apenas a ponta de um iceberg e um de vários processos pendentes sobre o Benfica, de igual gravidade.
6 - Do outro lado da Segunda Circular, a inacreditável guerra intestina entre um presidente que não sai porque não tem onde cair morto se sair e todos aqueles que já perceberam que ele vai arrastar consigo o clube na queda no abismo, vem tendo pelo menos a vantagem de desviar as atenções externas dos outros grandes escândalos que mancham o nome histórico do Sporting Clube de Portugal. Nas modalidades amadoras, recentemente regressadas aos títulos (um dos trunfos esgrimidos pelo acossado presidente), há uma investigação em curso alicerçada em fortíssimos indícios de corrupção de árbitros, decisiva para a conquista de títulos, designadamente no andebol. E, no futebol, acontece o mesmo que no rival Benfica: suspeitas de corrupção de jogadores de clubes adversários, com base em escabrosas trocas de correspondência electrónica, desaguando no personagem principal para o futebol leonino da equipa presidencial e em termos que não deixam grande margem para piedosas ilusões.
Eu sei, e insisto, que nada disto pode e deve afastar a presunção de inocência. E sei que a justiça tem o seu tempo, que é necessária e infelizmente lento. Mas há muitos países, em que, face àquilo que já se sabe, a justiça desportiva, pelo menos, já teria actuado. Para que fique claro: ao contrário do que o Benfica tentou conseguir na altura, a última coisa de que gostaria era de ver o meu FC Porto disputar o próximo campeonato sem a concorrência do Benfica e do Sporting. Mas, face àquilo que já sei e já percebi que se passou e passa, acho um escândalo que a ambos seja permitido disputar o campeonato da primeira Liga para o ano, como se nada fosse. E, face a tudo o que já sei e já percebi, reforço os meus parabéns a Sérgio Conceição e aos jogadores campeões: terem ganho este ano foi uma proeza incrível. Isto estava tudo armadilhado para que não ganhassem. O problema é que ninguém nos pode garantir que para o ano não continuará armadilhado.
PS: Compreendo a posição de Pinto da Costa de não se querer aproveitar da debandada dos jogadores do Sporting - fica-lhe bem a ele e ao clube. Mas estas rescisões unilaterais são diferentes de outras e os jogadores têm do seu lado toda a razão jurídica e ética para o fazerem. Com a sua atuitude, Pinto da Costa não está a ajudar o Sporting mas sim o atual presidente. Refiro-me concretamente a Bruno Fernandes, um excecional jogador que assentava como uma luva no plantel portista. Se quiser ajudar o Sporting, ultrapassando a intransigência do respetivo presidente, o que Pinto da Costa pode fazer é uma oferta pública pelo seu passe, declarando que o dinheiro ficará à disposição de quem no futuro represente legitimamente o Sporting Clube de Portugal.