Quando a Selecção joga mais branco
NÃO é culpa da Federação Portuguesa de Futebol que Portugal tenha uma das bandeiras mais feias do mundo, mais própria de um desses países africanos recentemente independentes, quase sempre proclamados revolucionários ou populares e quase fatalmente marcados pelo desgoverno e corrupção, e não uma bandeira correspondente a um país com quase 900 anos de história e as mais antigas fronteiras do mundo. A culpa é da 1.ª República, que substituiu a que era uma das mais bonitas bandeiras do mundo de então (todas as bandeiras azuis e brancas o são: Grécia, Finlândia, Uruguai, Argentina, etc), por aquele pot-pourri que devemos contemplar vendo nele o verde da esperança e o vermelho do sangue derrama- do pelos nossos heróis. Para a história dessa lindíssima bandeira que, com adaptações ligeiras, flutuou nas praças de Portugal entre 1143 e 1910, restou apenas a memória preservadas nas bandeiras dos Açores e na do meu FC Porto (e essa foi uma das razões porque, aos 6 anos de idade, vendo jogar pela primeira vez o FC Porto, e logo cativado pela beleza das cores do seu equipamento, me tornei portista para a vida).
De facto, a FPF não tem culpa disso, e é normal, embora não obrigatório (veja-se os casos de Itália ou Inglaterra), que o equipamento da Selecção reflicta as cores da bandeira. Mas não é obrigatório, todavia, que, partindo do verde e do encarnado, seja fatal conceber um equipamento de Selecção tão feio, tão monótono e tão desinteressante como o nosso. Não é certamente por imposição legal que ele é assim, visto que já tivemos outras variações, e bem mais aceitáveis, ao longo da história. Também não será por falta de dinheiro para encomendar a quem saiba outro design, mais atraente e moderno do que aquele desenxabido e uniforme vermelho, pois que é sabido que a Federação nada em dinheiro. Porque será, então? Em minha opinião, a resposta é simples: para prestar homenagem ao Benfica. Os responsáveis da FPF entendem que quanto mais a Selecção se aproximar ou confundir com o Benfica, até no equipamento, mais popular será entre os portugueses. E a prova é que quando, aqui há uns anos e por uma única vez, ousaram utilizar um equipamento alternativo azul-e-branco (por sinal, bem bonito e com bom resultado desportivo), nunca mais repetiram a graça - garantidamente, porque alguém poderoso não deve ter achado graça.
Foi, pois, com grande esperança - ou, pelo menos, com um novo olhar, que vi a Selecção portuguesa entrar em campo em Belgrado toda equipada de branco. A tal obrigada, pois que a anfitriã Sérvia também equipa toda de vermelho. Essa foi a primeira e agradável surpresa. A segunda foi melhor ainda.
A segunda agradável surpresa foi descobrir um Portugal que, sem subterfúgios nem calculismos tácticos de enervar o mais calmo dos adeptos, mostrou, desde o início, estar ali para ganhar o jogo e desse modo deixar practicamente resolvida a questão do apuramento para a fase final do Europeu de 2020. Parece que nas redes sociais e nos incessantes e inúmeros espaços televisivos de debate futebolístico se discutiu previamente muito o conservadorismo de Fernando Santos, ao optar por jogar de início com dois trincos, deixando de fora o menino 120 milhões e frustrando assim as expectativas de quantos esperavam ver em jogo simultaneamente o quarteto-maravilha Ronaldo, Bruno, Félix, Bernardo. Como não sigo nem uns nem outros (redes sociais ou debates futebolísticos), a coisa escapou-me. Mas concordo que Fernando Santos é por vezes tão conservador que se torna previsível, na sua filosofia de empate em empate até à vitória final. Mas isso é uma característica comum a quase todos os treinadores portugueses e muitos que o não são: o futebol é hoje, em 80% do tempo, um jogo em que o essencial é tentar evitar sofrer golos, e, mesmo depois de ter visto a sua equipa marcar quatro em Belgrado, uma das primeiras declarações de Fernando Santos foi para lamentar ter sofrido dois. Mas preocupou-me sim, antes do jogo, ter visto o seleccionador entrar pelo lugar comum das previsões, dizendo que a Sérvia iria jogar em ataque organizado, cabendo a Portugal tentar aproveitar para explorar os espaços assim abertos na retaguarda deles. Felizmente, nem o seu colega do outro lado nem, sobretudo, os jogadores sérvios, pensaram da mesma maneira. Antes mostraram um profundo temor e respeito pelo adversário que tinham pela frente, bem expresso na declaração final de Matic de que Portugal bem podia aspirar, com esta equipa, ao mais alto dos mais altos voos. E assim, contrariando ou não as expectativas do seleccionador, e contrariando ou não as suas instruções estratégicas, os jogadores portugueses, um por um, sentiram que deviam, sem cerimónias, e podiam, sem grandes estados de alma, ganhar aquele jogo. Como? Atacando, indo para o golo, decididos e por caminhos a direito. Sem passes e mais passes laterais e para trás, sem esquemas de contenção e água benta, com um futebol simples e eficaz, assente na superior classe individual de cada um, posta ao serviço da equipa - o que suponho que seja o tal colectivo de que tanto se fala.
Foi dos melhores jogos que eu vi fazer à Selecção desde há muito tempo. Gostei particularmente, como já disse, da simplicidade e eficácia dos processos atacantes e também da forma como se reagiu logo e de forma letal aos golos sofridos, não ficando recolhidos a curtir mágoas e medos. E, como Matic, acho que temos um grupo de 18-20 jogadores como há muito não tínhamos, que pode ser a base para muitas alegrias futuras. E já, não num futuro a médio ou longo prazo. Assim tenham, eles e o seleccionador, a confiança em si próprios que mostraram em Belgrado.
Uma nota final sobre este jogo: o terceiro golo de Portugal é um golo de catálogo, de perfeita inteligência e geometria em movimento. É daqueles momentos que fazem com que valha a pena ir ao estádio ver um jogo de futebol. Mas Ronaldo estava em off-side, talvez por uns 20 cms. Seria um crime lesa-futebol anular aquele golo, mas é o que sucederia se houvesse VAR. É uma das razões porque eu não gosto do VAR: anula golos lindos, até já festejados, e assinala penáltis que ninguém viu nem reclamou, fazendo com que valha mais o jogo secreto que se passa num gabinete com três homens e três ecrãs de televisão do que o jogo disputado perante cinco árbitros e cinquenta mil espectadores. Como disse Mohamed Salah, do Liverpool, explicando porque também ele não gosta do VAR, o problema é que o sistema «é demasiado verdadeiro» e o futebol quer-se humano.
Já ontem à noite, na pequena e bonita cidade de Vilnius, as únicas coisas que Portugal repetiu foram a vitória - neste caso, obrigatória - e o equipamento de branco. Já a exibição foi bastante descolorida, apesar de Fernando Santos ter posto de entrada o onze reclamado pelos entendidos. Mas a lucidez atacante exibida em Belgrado foi substituída por uma sofreguidão só quebrada pelo frango que colocou Portugal a vencer por 2-1 aos 60 minutos. Destaques individuais positivos apenas para Bernardo Silva, pela entrega e eficácia nas assistências, e para Cristiano Ronaldo, pelo poker, pelo empenho posto no jogo e mesmo pelo que me parece ser uma nova atitude de humildade e maior disponibilidade para a equipa, fruto de mais maturidade e uma auto-confiança mais tranquila. Pela negativa, destaques para William Carvalho, com tantos passes falhados que chegou a parecer negligente, e para João Félix, que, tirando um remate muito bem defendido pelo guarda-redes lituano, nada mais fez de jeito: mais uma chamada à Selecção, mais uma desilusão. De resto, um resultado bastamente melhor que a exibição.