Prevalece quem vir oportunidades onde outros só virem problemas…
Nestes tempos estranhos que vivemos, com a atividade física limitada aos passeios entre as janelas da frente, com vista para a Avenida, e as de trás, a dar para o jardim municipal, os dias escoam-se em teletrabalho, televisão, algumas incursões culinárias e saudades que se matam via videochamadas por WhatsApp.
Sem futebol em direto (não percebo por que nenhum operador compra os direitos do campeonato da Bielorrússia ou da Taça da Faixa de Gaza, que continuam em ação), já devo ter visto uma dúzia de vezes o último dia do Masters de Augusta de 2019, um grande triunfo de Tiger Woods, numa competição marcada pela bola de Francesco Molinari, que acertou numa pinha e acabou no lago, tirando assim o italiano da luta pelo casaco verde.
As ‘outras’ notícias
Na busca que faço, no intervalo da informação sobre a evolução da pandemia, por notícias de desporto, tenho encontrado vários níveis de abordagem. Por exemplo, as very silly: quando perguntaram a LeBron James quais eram os seus futebolistas preferidos, a estrela dos Lakers referiu os do Liverpool e ainda Mbappé e Cristiano Ronaldo, esquecendo-se de Messi, o que fez manchete em muitas publicações por esse mundo fora; da mesma forma, o facto do rapper Drake não estar infetado com Covid-19, mesmo depois de uma noitada de copos com Kevin Durant, que acusou positivo, também teve, apesar de ser uma não-notícia, destaque inusitado no New York Post. Mas verifiquei que, nesse mesmo jornal, a notícia mais lida de ontem tinha sido o relato da atriz Debi Mazar, retida em casa depois de ter sido testada positivo, dos sintomas do Covid-19, um pouco na linha do que fez a namorada do juventino Dybala, que recorreu às redes sociais para partilhar esse mesmo tipo de informação. Ou seja, há grande apetência em quem está em casa de perceber o que sente quem está infetado, uma prática que não deixará de causar dissabores aos hipocondríacos…
Preocupação global
E depois há as notícias terríveis, que avidamente procuramos na esperança, para já vã, da curva achatar, que têm a ver com o crescimento da pandemia, presente em quase todo o lado (menos na Coreia do Norte!), que começa a meter as garras de fora na América Latina, onde as condições de higiene e salubridade de centenas de milhões de pessoas estão longe dos patamares aceitáveis; ao mesmo tempo, e por razões análogas e quiçá ainda mais extremadas, aumenta a perplexidade pelo mal que o Covid-19 pode causar em África (o vírus está ativo em 41 dos 54 países) ou na Índia. A China arrepiou caminho a tempo e conteve a doença, usando meios draconianos, provavelmente só ao alcance de um regime musculado; Coreia do Sul, Japão, Taiwan e Singapura têm sido capazes de garantir alguma contenção; e a Europa e os Estados Unidos, que acordaram tarde para o problema, procuram agora correr contra o tempo. E como atrás de tempo, tempo vem, chegará o momento em que seremos chamados a recolocar a economia nos trilhos, recuperando, na medida do possível, a vida que tínhamos antes do ataque do novo coronavírus.
A cada dia que passa percebe-se que, apesar da bondade das teses, afigura-se cada vez mais irrealista apontar, para um horizonte médio, o retomar das competições desportivas e não se percebe de todo por que bulas os Jogos Olímpicos de Tóquio ainda não foram adiados. Haverá tempo para discutir o que fazer com os campeonatos inacabados, com os títulos por atribuir e com os lugares em competições europeias. Nessa altura, quando houver condições e o Covid-19 não passar de um capítulo negro e ultrapassado na história da humanidade, talvez tenhamos outra capacidade para colocar as coisas em perspetiva e dar a esses problemas a sua dimensão exata, na certeza de que nenhuma decisão será consensual.
O ‘day after’ no desporto
Mais pertinente será a questão de saber em que ponto é que no desporto a normalidade possível será retomada. Haverá condições para, em todas as modalidades, do futebol ao basquetebol, passando pelo ciclismo, pelo ténis, pelo boxe ou pelo golfe, continuar a pagar ao nível que vinha sendo praticado? Quanto tempo vai demorar até que, no futebol, se fale em transferências acima dos cem milhões, quando, ainda há meia dúzia de semanas, havia jogadores que se preparavam para render o dobro dessa verba? Há que ter consciência de que a crise económica que vai seguir-se terá consequências sísmicas no edifício da sociedade como a conhecíamos. Mas também é preciso dizer que desta guerra, como de todas as guerras, a humanidade vai sair mais forte e mais preparada. E que através da guerra será feita a seleção, como sempre, só prevalecendo os mais aptos e aqueles que melhor se conseguirem adaptar, sendo isto válido para pessoas, instituições e empresas. Hoje, a guerra é contra o Covid-19, e é nesse esforço que precisamos de manter o foco; mas é preciso estarmos preparados para enfrentar um day after que não será nenhum passeio no parque.
Quem se adaptar melhor…
A adaptabilidade a novas circunstâncias é o principal atributo para a longevidade das espécies. Mutatis mutandis, daqui em diante, quem conseguir ver uma oportunidade onde outros só vislumbram problemas, estará manifestamente em vantagem. Por exemplo, para uma União Europeia que andava à procura de recuperar os fundamentos solidários que a fizeram evoluir de zona económica para projeto político, este é um momento de excelência que deve ser agarrado com ambas as mãos. Se a reconstrução da Europa pós-Covid-19 for feita com sentido comum, estamos perante uma oportunidade irrepetível para criar laços que serão indestrutíveis; se for cada um por si, o projeto europeu afundar-se-á irremediavelmente.
No desporto, e em particular no futebol, da redução de meios que se adivinha deverá resultar um abrandamento na profundidade do fosso entre ricos e pobres. Porque haverá dois tipos de dificuldades: as dos ricos, que vão sobreviver mas não sabem viver com pouco dinheiro; e as dos pobres, que precisam, antes de mais, se se manter à tona para, a seguir, poderem continuar a encontrar soluções imaginativas que os aproximem dos outros.
Oportunidade ou problema?
Finalmente, no que respeita aos clubes e à sua organização, a tese de que é preciso adaptabilidade e ver soluções onde outros só descortinam problemas, aplica-se sem tirar nem por. Na dificuldade, os clubes devem ser solidários, porque todos dependem de todos, ninguém pode competir contra o vazio e dar-se bem. Se calhar, este é o momento de viragem de que Pedro Proença precisava para ver reconhecida pelos clubes a importância de defender a indústria do futebol e para Fernando Gomes impor a sua magistratura de influência e afinar o novo mandato federativo pelo diapasão do regresso aos valores de respeito, fair play e solidariedade, que têm andado arredados das práticas de demasiados clubes. E quem melhor do que uma figura prestigiada e consensual como Fernando Gomes para consegui-lo?