«Prendam-nos»?
1.º mal do Benfica foi o sentimento de impunidade que se apoderou dos seus dirigentes, fruto do apoio dos supostos seis milhões de adeptos, da militância confessa das grandes figuras da cena política actual e de um ciclo de quatro campeonatos consecutivos ganhos, a caminho de um inédito penta que se anunciava como facto adquirido - tanto mais que, dos seus únicos rivais, o principal estava falido, fruto de uma politica de gestão financeira suicidária de vários anos, e o outro tinha sido tomado por um demagogo incendiário, seguido pelas massas sempre disponíveis para tal e pelo obsequioso silêncio dos cobardes. E então, a SAD de Luís Filipe Vieira, que indiscutivelmente fizera grande obra no Benfica - um Estádio eficiente e moderno, um centro de treino e formação modelar, um contrato de patrocínio até gora sem comparação intramuros, o restabelecimento da credibilidade financeira da sociedade, etc - achou-se maior e acima do que qualquer outra entidade do país. Foi aí, aliás, que começámos a ver a SAD tratar o clube pomposamente por a «Instituição». E a «Instituição», como dizia há dias o pré-candidato à sucessão de Vieira, Rui Gomes da Silva, tem de escolher entre «a grandeza da Europa ou a pequenez de Portugal». Tudo dito, o Benfica passou a imaginar-se maior do que Portugal. Daí o célebre «Projecto Global», desvendado e jamais desmentido, de fazer a SAD do Benfica tomar o controle ou uma influência determinante em tudo o que fosse relevante para os seus fins, neste pequeno país: as instâncias de decisão desportiva, mas também as grandes empresas, a banca, a comunicação social, o governo, o poder politico, a justiça. O país a seus pés.
O processo e-Toupeira é o exemplo acabado dessa arrogância e desse sentimento de total impunidade. Mas antes de explicar como e porquê, façamos as necessárias distinções.
Primeiro que tudo, é necessário entender que o processo e-Toupeira é apenas um processo instrumental de outro processo, o principal - o processo dos e-mails. É neste que estarão ou não estarão as provas das graves suspeitas que pesam sobre o Benfica, denunciadas por Francisco J. Marques e outras fontes, e que se reportam a arbitragens, eventuais aliciamentos de adversários, bem como o destino do tal «saco azul» que o Ministério Público identificou como instrumento da SAD benfiquista, apenas não sabendo ainda para pagar o quê e a quem. Para bem da tal transparência e limpeza de procedimentos tão apregoada por LF Vieira, espera-se que a acusação deduzida no e-Toupeira não tenha como reflexo secundário deixar cair ou esmorecer as investigações no processo principal. O que está em causa é apenas saber se a competição é séria e igual para todos.
Em segundo lugar, e ao contrário do que o sensacionalismo jornalístico, o clubismo sectário e a justiça popular tanto apreciam, é necessário caminhar com pinças - o que não é o mesmo que fingir que nada de grave se passa desde já. Uma acusação formal em processo-crime não é uma condenação e a experiência diz-nos que muitas acusações, por mais fundamentadas que pareçam, podem ser - e são-no bastas vezes - destruídas ou por uma defesa eficiente ou por uma verdade contrária. Mas uma acusação deduzida pelo MP também não é uma simples suspeita, um diz-que-disse: é um acto formal mediante o qual o MP se propõe levar alguém a julgamento porque julga ter contra ele indícios de prova suficientes para o fazer condenar em tribunal.
Ora, salvaguardando o direito inquestionável que a SAD do Benfica tem de escolher a estratégia de defesa que melhor entende adequada, parece-me claramente insuficiente começar por um comunicado de 4 minutos do seu presidente, sem direito a perguntas. Sem direito a perguntas, porquê? Um senhor oficial de justiça, que se mantém em prisão preventiva por causa disso, acedeu ou não, como diz o MP, por umas 600 vezes a processos em segredo de justiça que interessavam ao Benfica, utilizando para tal chaves de acesso surripiadas a três magistradas, e passando as respectivas informações ao senhor Paulo Gonçalves, director jurídico da SAD e braço direito do presidente para o futebol? Fê-lo ou não por iniciativa deste e com a colaboração de um terceiro elemento, actuando como intermediário, e sendo remunerado em espécie por tais serviços, com dezenas de bilhetes para a tribuna VIP do estádio, camisolas do clube, acesso privilegiado aos jogadores, etc? Porque tinha o Benfica tanto interesse em saber de antemão todas as informações relativas aos processos em investigação contra si ou em que era parte e também em que eram parte os seus rivais, e até processos particulares do seu presidente e mesmo processos a que era totalmente alheio (como o processo que a SAD do FC Porto me instaurou e perdeu)? O acesso antecipado a tais informações permitiu que elementos da SAD, nomeadamente Paulo Gonçalves, pudessem fazer desaparecer elementos de prova relevantes que pudessem ser usados contra si em posteriores buscas que vieram a ser levadas a cabo pela PJ e MP?
É isto que está em causa no e-Toupeira e, como se vê facilmente, não é coisa de somenos. Que me lembre, não há registo, em toda a história judicial portuguesa, de alguém - pessoa individual ou colectiva - ter tido a audácia de penetrar dentro do sistema judicial e aí se instalar para, de forma sistemática, recolher informações em segredo de justiça sobre os processos que lhe diziam respeito. Independentemente do que se vier a provar ou não sobre as vantagens desportivas daí extraídas, estamos perante um autêntico assalto ao coração do Estado de Direito. Sabendo que era isto que estava em causa, é deveras notável, verdadeiro sintoma dessa impunidade de que falei, que um vice-presidente do Benfica solte o grito de «prendam-nos!» (inspirado no «lock her up!» de Trump sobre Hillary Clinton), só porque Brahimi encostou a mão à cara de um adversário ou Sérgio Conceição foi expulso do banco num jogo. «Prendam-nos»? A quem?
2.º Tendo sido o único que fez frente a Bruno de Carvalho, Pedro Madeira Rodrigues, deveria ter sido o único a merecer ganhar as eleições no Sporting. Mas ganhou Frederico Varandas, que teve a dignidade de sair depois do assalto comandado a Alcochete. Patética foi a campanha de Ricciardi, que Vasco Pulido Valente disse e bem que tratava todos os outros como se fossem seus criados. Toda a sua campanha foi feita com base no terror: o Sporting está arruinado e só um banqueiro, como ele, podia e sabia salvá-lo. Ele, que também levou o BES à falência e que só se distinguiu dos outros por os ter traído, depois de ter chorado porque o primo Salgado não lhe quis reconhecer «idoneidade» para lhe suceder. Ele, justamente um dos inventores de Bruno de Carvalho e desse «benfeitor» chamado Álvaro Sobrinho, herói do BES-Angola e dono de 30% da SAD do Sporting.
Croquetes, loucos e vaidosos vazios à parte, a grande dívida de gratidão dos sportinguistas nesta hora de desespero deve ir inteirinha para José Sousa Cintra. Por puro amor à camisola, ele sacrificou um Verão, a sua vida profissional, familiar e pessoal, e segurou o barco com dedicação total, sabedoria, classe e absoluta isenção. Enfrentou ameaças, situações-limite, decisões imperativas e entrega a equipa classificada para a fase de grupos da Liga Europa e em primeiro lugar no campeonato. Pessoalmente, só lamento que o nosso tradicional jantar de Verão na sua casa de Sagres, onde ele recebe como ninguém, tenha ficado adiado para o ano que vem.