Pragmático ou conservador?

OPINIÃO21.06.202107:00

Fernando Santos ainda vai a tempo de fazer o que fez em 2016: olhar para o grupo e tirar o melhor que os melhores podem oferecer à Seleção

PONTO prévio: tenho, desde 2016, uma dívida de gratidão para com Fernando Santos. Foi ele, não tenho qualquer tipo de dúvida, um dos grandes responsáveis pela maior alegria desportiva da minha vida, quando Portugal conquistou o título europeu naquele inesquecível 10 de julho, em pleno Stade de France. Acredito, aliás, que este é um sentimento comum a todos os portugueses, ou pelo menos àqueles que gostam e sentem a Seleção Nacional e por isso vibram de forma particularmente intensa com os seus feitos. Nada contra os que criticavam, já nessa altura, as suas opções ou o seu estilo demasiado conservador, mas sempre entendi, numa opinião (tão boa como qualquer outra, julgo) que mantenho até hoje, que naquele Europeu em concreto e com aquela geração específica de jogadores, foi o conservadorismo de Fernando Santos que nos permitiu celebrar a primeira grande conquista internacional da Seleção Nacional. Gostando mais ou menos do estilo, um dos segredos de Portugal em França foi, precisamente, a forma como Fernando Santos, percebendo o grupo que tinha nas mãos, conseguiu dele tirar o melhor partido, num futebol que, sem entusiasmar, se revelou de uma eficácia indiscutível. Há quem sempre lhe tenha chamado conservador, eu preferi vê-lo, simplesmente, como pragmático. São, perceba-se, duas coisas diferentes.
Essa dívida de gratidão não me impede, contudo - como não deve impedir qualquer outro português - de ter uma opinião crítica sobre a forma como a Seleção Nacional se apresentou nos dois primeiros jogos deste Europeu. Ou, mais concretamente, sobre as opções de Fernando Santos. Claro que é, sempre, muito mais simples (e até injusto) falar depois do jogo, quando já sabemos o resultado. É, convenhamos, tremendamente mais fácil ser treinador de bancada do que ser treinador de futebol. Mas, como em todas as profissões, contam os resultados. Julgamos o mecânico pela forma como deixa o nosso carro, use uma chave de fendas ou de estrelas, depois de o irmos buscar à oficina; o eletricista, use um busca-polos ou apanhe um choque para ver se uma tomada tem corrente, pela forma como nos deixa a iluminação; o cozinheiro, use uma medida para temperar a comida ou prefira fazê-lo a olho, pela forma como fica a comida; o jornalista, use caneta, telefone ou prefira o computador, pela quantidade de vezes que acerta uma notícia. E os treinadores, optem eles por uma tática mais ou menos arrojada, pelos resultados. Não há como fugir a isso. O problema, claro está, é que poucos de nós percebem alguma coisa de mecânica, eletricidade, cozinha ou jornalismo. Mas de futebol percebemos todos. Ou, pelo menos, julgamos perceber. É uma realidade com que todos os treinadores têm de saber lidar. E Fernando Santos, mesmo que tenha sido campeão da Europa e nos tenha conduzido à vitória na Liga das Nações, não escapa à regra. É, simplesmente, como é.  
Por isso, cá vão algumas ideias sobre Portugal no Europeu.

Oprimeiro grande equívoco de Fernando Santos, parece-me, é querer ganhar da mesma forma que ganhou em 2016. Porque, na vida mas no futebol muito em particular, uma fórmula que tenha resultado uma vez não tem, necessariamente, de resultar sempre. A começar pelo facto de o grupo de jogadores não ser sempre o mesmo. Em França tínhamos Nani, Quaresma, Adrien, João Mário ou Cédric. Este ano temos Bernardo Silva, Diogo Jota, Bruno Fernandes, João Félix ou Nélson Semedo - infelizmente, sem desprimor para o lateral-direito do Wolverhampton, perdemos João Cancelo a poucos dias do arranque oficial da competição. A juntar a isto temos todos os outros jogadores que nos conduziram à conquista do Europeu... com mais cinco anos em cima. Pode não parecer muito, mas é. E é, portanto, um grupo de jogadores muito diferente daquele que tínhamos em 2016. É uma discussão antiga: deve um treinador escolher a tática em função dos jogadores que tem à sua disposição ou, pelo contrário, deve escolher os jogadores em função da tática que tem em mente? Dando de barato, mesmo não concordando, que um treinador de clube, que pode contratar jogadores todos os anos, pode escolher a primeira opção, no caso de um selecionador parece-me evidente que não resta grande alternativa que não seja escolher a segunda. Chamar os melhores e adaptar a forma de jogar da equipa àquelas que são as suas características e o seu momento de forma. Foi, repito a minha convicção, aquilo que Fernando Santos fez em 2016, com tremendo sucesso. Mas não é, perdoe-me o selecionador a opinião, aquilo que está a fazer em 2021.
O discurso da diferença entre jogar bem e jogar bonito, tanto do agrado de Fernando Santos, funciona quando se ganha. Quando não se ganha (ou não se joga bem, portanto) e também não se joga bonito é que a porca torce o rabo. Acresce a esse detalhe o facto de Portugal ser, hoje, campeão da Europa. Que é, convém realçar, diferente de não ser campeão da Europa. A exigência, naturalmente, aumenta. Pode ser, até, injusto, mas ninguém quer ver um campeão europeu, ainda mais quando se trata de uma seleção com tanto talento como, reconhecidamente, tem esta seleção, a jogar como equipa pequena. Não chega, sequer, quando se ganha. Quanto mais quando se perde...

UMA das questões mais debatidas em torno das opções de Fernando Santos neste Campeonato da Europa prende-se com a questão do duplo pivot defensivo. Confesso que se frente à Hungria não fez grande sentido (algo que ficou comprovado com os três golos depois de Fernando Santos ter soltado a equipa das amarras), admito que fosse, na teoria, uma boa solução quando se defronta uma equipa poderosa como é, julgo ser isso indiscutível para todos, a Alemanha. Aliás, não me parece, sequer, que o problema defensivo da derrota da Seleção frente ao conjunto germânico tenha estado, exatamente, em Danilo ou William Carvalho, mas na forma como, podendo fazê-lo mesmo mantendo os dois em campo - recuando Danilo, que nem sequer estranharia a adaptação, para central e encostando os laterais portugueses aos laterais alemães, libertando dessa responsabilidade os nossos extremos -, Fernando Santos não foi capaz de descobrir a fórmula para travar a estratégia de Joachim Low. Transformar Bernardo Silva ou Diogo Jota em laterais, obrigando-os a gastarem quase todas as energias numa função que, ainda por cima, nem desempenham com eficácia, é, sejamos claros, começar desde logo a perder o jogo. Não alterar as coisas assim que se apercebe de que elas estão a acontecer é ainda mais incompreensível. E foi mais aí, do que propriamente pelo facto de jogar com dois trincos, que Portugal começou, desde logo, a perder o jogo.
Há, depois, a questão ofensiva. Faz sentido uma equipa com tanto talento como Portugal jogar com tantos grilhões táticos, dando a iniciativa ao adversário - por mais poderoso que seja - e limitar-se a explorar o contra-ataque? Não me pareceu no jogo frente à Hungria, apesar da vitória, e muito menos me pareceu na derrota com a Alemanha. Aliás, o que mais confusão me fez no jogo com a Alemanha foi ter ouvido Fernando Santos, quando questionado sobre se não se tinha arrependido de ter deixado Renato Sanches (que já tinha entrado muito bem frente à Hungria) de fora do onze, dizer, com ar meio enfadado, que Bernardo Silva tinha sido decisivo no primeiro golo de Portugal no jogo. Ou seja, para o selecionador nacional, para entrar Renato Sanches o sacrificado seria... Bernardo Silva. Como se desfazer o duplo pivot defensivo não lhe passe, sequer, pela cabeça, mesmo que o melhor período da Seleção contra a Alemanha (e contra a Hungria, já agora...) tenha sido, precisamente, com Renato Sanches a médio, à frente do trinco. Sim, sei bem que no Lille, Renato também tem jogado encostado à direita. Mas se as coisas funcionaram, nestes dois jogos, bem melhor com ele no meio, não é de dar uma oportunidade à ideia? Será, pelo menos, melhor do que teimar numa fórmula que, parece já ter ficado evidente, não funciona e dificilmente irá funcionar.
É, apenas, um exemplo, porventura o mais flagrante, reconheço. Mas numa altura em que ainda há esperança de Portugal seguir em frente na prova, também eu tenho esperança de que Fernando Santos faça aquilo que, no meu ponto de vista, fez em 2016: olhe para os jogadores que tem, entenda o seu momento de forma e meta a equipa a jogar de forma a aproveitar o que de melhor os melhores podem dar à equipa. Mesmo que isso represente correr um pouco mais de riscos. Que seja pragmático, como ainda acredito que seja. E desminta aqueles que olham para ele, apenas, como conservador.