Porque o futebol é de todos
Jorge Jesus não gostou de ler e ouvir as críticas de José Augusto (bicampeão europeu, oito vezes campeão nacional e três vezes vencedor da Taça de Portugal pelo Benfica como jogador) e Toni (oito títulos de campeão nacional, cinco vezes vencedor da Taça de Portugal e uma Supertaça conquistada só como jogador do Benfica, a que junta mais dois campeonatos e uma Taça de Portugal como treinador dos encarnados, além de finalista da Taça dos Campeões Europeus) e abespinhou-se. Ficou-lhe mal. É verdade que depois fez uma espécie de retratação (menos mal), mas não deixou de criticar aqueles que criticam o futebol praticado pelo Benfica. Atirou-se a advogados e arquitetos que falam de futebol, perguntando se isso «cabe na cabeça de alguém»?
A verdade é que sim, cabe. Porque - e é assim há muito tempo -, em Portugal toda a gente fala de futebol. Advogados, arquitetos, juízes, médicos, professores, padeiros, pedreiros e, imagine-se, até gente reformada ou desempregada. São eles, todos juntos, que fazem - pagando para ir aos estádios ou para ver o jogo na televisão, pagando quotas, fazendo dos filhos sócios assim que nascem, comprando camisolas... - do futebol a indústria que é e permitem aos maiores clubes, como é o caso do Benfica, pagar a treinadores e jogadores os milionários ordenados que recebem. Pode fazer confusão a Jorge Jesus, e fará certamente confusão a muitos outros treinadores, mas é a verdade. E, por ser uma realidade indesmentível, todos se sentem no direito de ter opinião. E têm, bem vistas as coisas, o direito de opinar sobre futebol. E, no caso de serem adeptos (sejam mais ou menos conhecidos ou simplesmente anónimos) do Benfica, têm, é claro, direito de dar a sua opinião sobre o futebol praticado pelo Benfica. No caso concreto, do pouco futebol que pratica este Benfica.
Não é, de qualquer forma, preciso ser um expert ou ter um curso de treinador para perceber que o Benfica de Jorge Jesus está muito longe de corresponder às expectativas que criou no início da época. E não estou, sequer, a falar das promessas de «arrasar» proferidas pelo treinador na sua apresentação. Não era, afinal, necessária aquela frase - proferida, decerto, por força do entusiasmo com que Jesus abraçou o ambicioso projeto que lhe foi apresentado por Vieira - para alimentar os sonhos dos adeptos encarnados. O Benfica acabara de assegurar um treinador que levara o clube, há não muito tempo, à conquista de três títulos de campeão nacional, uma Taça de Portugal, uma Supertaça e cinco Taças da Liga. A que juntara ainda duas presenças na final da Liga Europa, feito que, mesmo não as tendo ganho, não deve ser menosprezado. E voltava como campeão do Brasil e vencedor da Taça dos Libertadores com o Flamengo, o que aumentava ainda mais a expectativa, em especial naquilo que Jesus poderia trazer à dimensão internacional do Benfica, há muito reclamada mas quase sempre adiada. A juntar ao regresso de um grande treinador (que Jorge Jesus continua a ser), Luís Filipe Vieira apostou as fichas todas (e os euros também...) na construção de um plantel capaz de corresponder à bem conhecida e nunca escondida exigência de Jorge Jesus. E isso, convenhamos, bastava para que os benfiquistas se entusiasmassem. É normal.
A verdade, contudo, é que quase meio ano depois o Benfica de Jorge Jesus tarda em corresponder às expectativas criadas. Foi afastado da Champions ainda antes da fase de grupos, perdeu a Supertaça para o FC Porto e no campeonato está no terceiro lugar, em igualdade pontual com os dragões e a quatro pontos do Sporting. O que é, já de si, preocupante. Mas esse não é, pelo menos para já, o principal problema de Jorge Jesus como treinador do Benfica, até porque há ainda muito para ganhar e se os resultados começarem a aparecer o que ficou para trás facilmente é esquecido. É sempre assim no futebol. Aliás, Jorge Jesus sabe-o melhor do que ninguém, porque ele próprio já viveu, no Benfica, momentos bem mais delicados do que este, na época em que lhe viu fugir todos os títulos nas últimas partidas da temporada. Deu a volta, com o auxílio de Vieira, e voltou a ganhar, estando, é também inegável, intimamente ligado àqueles que foram os melhores anos da história recente do clube da Luz.
Os resultados (ou a falta deles) não são, portanto, algo que deva fazer Jesus perder o sono. Pelo menos para já. O grande problema é, por agora, outra. Não sei se Jesus voltou ou não diferente dos anos que passou fora de Portugal. Nem isso interessa para o caso, embora não acredite que tenha regressado menos exigente com os jogadores (que pude testemunhar quando treinava clubes como o Estrela da Amadora, o Vitória de Setúbal, o UD Leiria ou o Belenenses) ou menos intenso nos treinos ou nos jogos, mesmo que possa estar mais comedido na forma como exterioriza essa intensidade. Acredito mesmo que Jesus continua a ser o mesmo grande treinador que sempre foi e que sempre mereceu os melhores elogios dos jogadores, mesmo os consagrados, que com ele trabalharam. Mas há neste Benfica de Jesus, isso é inegável, uma grande diferença para os outros Benficas de Jorge Jesus: é que mesmo aqueles que não ganharam jogavam três vezes mais do que joga o atual. Essa foi, de resto, uma das características que fez de Jorge Jesus aquilo que ele é hoje: as suas equipas (todas elas) jogavam muito bem à bola. Mesmo quando não ganhavam. Foi a isso que Jorge Jesus habituou os adeptos, em especial os do Benfica, pelos seis anos que passou na Luz antes de se mudar para o Sporting - onde, já agora, colocou também o leão a jogar o triplo daquilo a que os sportinguistas estavam acostumados. É, portanto, normal que olhando para este Benfica exista, em especial entre os benfiquistas, um sentimento de desilusão. Pelo que o Benfica não ganha, sim, mas em especial pelo que o Benfica não joga. Mesmo quando ganha.
Jorge Jesus sabia que a exigência estaria no máximo neste seu regresso à Luz. Porque havia quem não o quisesse ou porque havia quem, como Vieira, o visse como o remédio para todos os males do Benfica. E porque havia, num e noutro lado da barricada, muita gente que esperava, gostando mais ou menos de Jesus, que juntando aquele que é um dos melhores treinadores portugueses da atualidade a um plantel que recebeu uma injeção de 100 milhões de euros esta temporada o sucesso estava garantido. É, portanto, normal que, não estando as coisas a funcionar, mesmo quem antes o elogiava o esteja agora a criticar. Voltando a elogiá-lo, sem grande problemas, se o Benfica entrar no rumo certo. Mais uma vez, e como se costuma dizer, é apenas futebol. Sempre foi assim e assim sempre continuará a ser.
A outra questão, bem mais profunda e que merece muito mais atenção do que umas bocas escritas ou ditas por alguém, com mais ou menos currículo, é perceber do que precisa este Benfica para entrar no caminho certo. Sim, haverá atenuantes, como a ausência de público nas bancadas (que no caso das águias sempre teve enorme peso) ou o Covid-19, que tem, nestas últimas semanas, afetado de forma especialmente violenta o plantel encarnado. Jesus já usou as duas para justificar, mesmo que apenas em parte, o mau momento futebolístico da equipa. Mas, percebendo as condicionantes que ambas as situações possam provocar, não me parece que resida aí o grande problema do Benfica, que já jogou bem sem público nas bancadas e que começou a jogar mal bem antes de o Covid-19 atacar em força no Seixal. Haverá, talvez, uma ou mais explicações mais complexas. Eu, que não tenho curso de treinador, vejo pelo menos duas: mau planeamento na construção do plantel (é por demais evidente a falta que faz um verdadeiro 6 numa equipa que joga, como jogou quase sempre com Jesus, em 4x2x4) e demasiados milhões gastos em futebolistas que, até agora, não provaram valer sequer metade. Não direi, já, que o Benfica comprou gato por lebre, mas que parece... parece.
Jorge Jesus, como (repito) grande treinador que é, saberá melhor do que qualquer um de nós qual é (ou quais são) a verdadeira razão para o Benfica não jogar aquilo que devia jogar. O próximo desafio é resolvê-la (ou resolvê-las) o mais depressa possível. De preferência não perdendo tempo a preocupar-se e a responder às opiniões de quem, mesmo não sendo treinador, tem todo o direito a dá-las. Até porque não é aí, de certeza, que encontrará a solução.