Pela memória
Meu caro Ricardo Quaresma:
COM janeiro de 1938 no fim, a Espanha (mas só a franquista) veio jogar às Salésias. Selecionador era Cândido de Oliveira, ganhámos-lhes com golo do Pinga, craque do FC Porto, que meses antes se pusera em xeque ao ajudar na fuga de republicanos que tinham escapado de Vigo às atrocidades falangistas. Quando nos perfilámos diante da tribuna, eu, o Amaro e o Simões, todos do Belenenses, tal como o sr. Cândido, furtámo-nos à saudação fascista do braço erguido. Eu deixei-me ficar em sentido, o Simões e o Amaro em vez de abrirem a mão em palma, cerraram os punhos, dando ao gesto sentido ainda mais provocador. Antes da Censura «compor» a foto que a Stadium publicou - pintando-lhe dedos espetados em lugar de mãos fechadas, a polícia política intimou-nos a interrogatório. Já sabia que o Aljube era o inferno na «sala dos reposteiros» - o tugúrio no último andar, calafetado com cobertores, para que os gritos dos torturados não se ouvissem na rua a subir para a sevícia. Talvez por isso me tenha saltado da boca, a desculpa habilidosa: «Não dei por nada, estava distraído!»
Sem álibis, o Simões e o Amaro ficaram presos 15 dias. Indo eu lá visitá-los, avisaram-me: que não me aventurasse mais porque os torcionários não estavam convencidos da minha inocência - e, ao Amaro e ao Simões acabaram por libertá-los por o Belenenses, que tinha «grandes influentes», do Henrique Tenreiro ao Américo Tomás, precisar deles.
Quis contar-te como foi por sentir em ti o nosso espírito das Salésias (e o do Pinga) numa das tuas melhores trivelas em resposta ao anexim racista de quem ainda teve o desplante de te querer calado, de te querer acéfalo - por, no fundo, haver nele, a sombreá-lo, paráfrase duma ideia famosa de São Paulo: tudo é impuro para aqueles que são impuros, nada é impuro para os que são puros…
Abraço do coração, deste Quaresma (o Artur, não teu tio-avô - que teu tio é o outro que foi do Belenenses depois de mim, o Alfredo Perrulas Quaresma).