Para pôr o sono em dia não há melhor que um Mundial
1 Ainda não acabou a primeira jornada do Mundial, e eu já posso fazer o meu primeiro balanço pessoal do pouco que vi até aqui, pois que parte dele coincidiu com dias de trabalho e outra parte com não menos importantes dias de descanso. E, para mim, o futebol é uma coisa, não é a mãe de todas coisas, sob pena de se tornar a menor de todas as coisas. Pois então não vi mais do que o Portugal-Espanha e partes do Alemanha-México e do Brasil-Suíça. Por ora, Portugal vence: tem zero pontos, contra um da Alemanha e dois do Brasil. Ou seja, não adormeci nunca durante o jogo dos portugueses contra os espanhóis, adormeci uma vez a ver os alemães contra os mexicanos e duas vezes a ver o fabuloso escrete brasileiro a mastigar bola contra os suíços, sendo muito justamente castigado com um empate. Ainda estão a aquecer os motores, dirão. Pois, a questão está justamente aí. Estarão a aquecê-los ou estarão ainda a tentar arrefecê-los em jogadores que já levam uns 60 jogos nas pernas esta época, antes de depois tentar voltar a aquecê-los, lá mais para a frente?
Os meus leitores sabem que esta minha conversa é recorrente de cada vez que entramos num Mundial: são equipas a mais, jogos a mais, tempo de competição a mais, exigindo uma organização tão pesada, tão cara e tão desgastante que praticamente coloca o país organizador em estado de sítio ao logo de mais de um mês e, de facto, reduz os países com capacidade para tal a um estrito número de potenciais candidatos. Actualmente são trinta e duas Selecções, 64 jogos e mais de um mês de competição, findo o qual nada nem ninguém pode garantir que o campeão do mundo será a melhor Selecção em prova, mas apenas a que conseguiu lidar melhor com o cansaço que os seus jogadores já trazem acumulado e que mais um mês e sete jogos acrescentarão até ao limite. E se este panorama já é assim hoje, imagine-se dentro de oito anos, no Mundial de 2026, que a FIFA, numa decisão luminosa, resolveu passar para o dobro: 64 Selecções - mais de um terço de todas as Federações de Futebol inscritas no mundo inteiro! A primeira constatação a fazer é que, em 2026, excluindo o país campeão em título e os três países organizadores, todos apurados à partida, a fase de qualificação vai ser curiosa: suponho que cada grupo terá não mais de três países, um dos quais onde o futebol será praticamente amador, outro onde estará ao nível das Ilhas Feroé e outro com qualificação garantida de olhos fechados. Qualquer dos dois clubes do meu bairro, o Belenenses e o Atlético, se fossem nações independentes poderiam ter o estatuto de cabeças-de-série na qualificação para o Mundial de 2026. Para erguer este folclore futebolístico, a FIFA entregou a organização a toda a América do Norte, não fazendo caso da guerra comercial recentemente lançada por Trump contra os seus vizinhos do sul e do norte. É que a experiência inaugural prevê-se tão complicada que, guerras à parte, nem sequer o país economicamente mais poderoso do mundo se atreve a avançar sozinho. E, assim, o Mundial desenrolar-se-á entre México, Estados Unidos e Canadá, com 128 jogos previstos e distâncias a percorrer de avião que podem chegar naturalmente às oito, dez horas de voo. Vai ser uma festa!
E tudo isto, porquê? Para sustentar a vida milionária da tribo do futebol internacional, ao mais alto nível: uns milhares de dirigentes e altos funcionários da FIFA, das organizações continentais como a UEFA e das Federações nacionais. Já algumas vezes os vi actuar de relativamente perto e digo-vos, meus amigos, que aquilo é mesmo uma elite de marajás como só existe na Fórmula 1, mas esta bem mais ampla e cada vez mais insaciável: não vivem no luxo, vivem no luxo absoluto de marajás - voos privados ou em executiva, sempre; hotéis de 5 estrelas e suites presidenciais; restaurantes de luxo; meninas acompanhantes para satisfazerem cada suspiro de Suas Altezas; limusines com motorista às ordens 24 horas por dias; batedores de polícia para lhes desimpedir o caminho porque obviamente estão sempre atarefadíssimos, etc e tal. Até aqui, a coisa fazia-se descaradamente à custa do esforço extra quase gratuito dos jogadores, em nome do patriotismo destes, e da expropriação sumária dos direitos dos clubes, obrigados a ceder os jogadores, continuando a pagar-lhes os salários, enquanto eles se batiam pela Pátria e pelos marajás da FIFA e das federações. Mas, como não podia deixar de ser, as coisas agora estão a mudar, porque já não eram mais sustentáveis assim: as federações já começam a pagar prémios a sério aos jogadores e a FIFA já começa a compensar minimamente os clubes que cedem os artistas sem os quais não haveria espetáculo - perdão, negócio.
Mas, viverá quem me desminta: este é o caminho certeiro para matar a galinha dos ovos de ouro. Todo o excesso é inimigo da qualidade. Toda a banalidade destrói a excepcionalidade. Por isso é que da cobrança, de facto, excepcional, de um livre por Cristiano Ronaldo, se faz todo um enredo como se não tivesse havido nada antes comparável àquilo em toda a história do futebol. Ou de um pontapé, de facto, maravilhoso, de Phellipe Coutinho ao ângulo da baliza adversária, se constrói toda uma narrativa que serve para esquecer a história de um jogo tão chato que este vosso escriba adormeceu duas vezes no seu enlevo.
2E, a propósito do fantástico livre de Cristiano Ronaldo, eu vou de pescoço ao cadafalso. Eu e Alan Shearer. Escrevi aqui que Cristiano não podia cobrar todos os livres da Selecção, sobretudo agora que ela tem outros, como Bernardo Silva, aptos a fazê-lo nas posições que não são propícias ao pé direito do capitão de Portugal. E acrescentei que a própria estatística assim o dizia. Shearer, comentando o Portugal-Espanha para uma TV inglesa, disse o mesmo, mas com a estatística mais presente, acrescentou que Cristiano não marcava um golo de livre por Portugal há 45 tentativas. Veio então aquele primeiro livre, sobre o flanco direito do ataque português, em posição nada favorável a CR7. Ele insistiu em cobrá-lo e fê-lo sem sombra de perigo. E veio depois o tal livre, esse sim, em posição adequada para um golpe de génio, que saiu e perfeito, naquelas duas curvas coincidentes, a lateral e a ascendente-descendente. Conclusão? Acho que continuo a ter razão...Toda a banalidade destrói a excepcionalidade.
3 Não percebo porque razão os sportinguistas que desesperam por afastar aquele louco que se alapou ao poder - e que agora, só agora, são todos os nomes - ainda não chegaram à solução óbvia: o homem só sairá quando lhe arranjarem um modus sobrevivendi. De outra forma, não terá onde cair morto, nem como sustentar a família (a que passa a vida a recorrer corajosamente), pois que ninguém em seu perfeito juízo dará emprego a alguém cujas únicas aptidões conhecidas é levar empresas à falência, elogiar-se a si próprio e produzir longos testamentos no facebook para mais tarde recordar. E quem tem o obrigação de o fazer, antes de mais, são os dois notáveis que criaram as condições financeiras para levarem a criatura ao poder e ainda lhe granjearem fama de génio financeiro: Álvaro Sobrinho e José Maria Ricciardi.
PS: E, com este, aí vão dois textos consecutivos em que consegui não escrever o nome da criatura. É a minha contribuição para ajudar a solucionar a crise do Sporting.
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