Para os verdadeiros adeptos
Os episódios sucedem-se e não parece haver um fim: há pessoas que quase matam outras pessoas tendo como justificação uma pretensa rivalidade clubística ao estilo das disputas entre as barras bravas sul-americanas. Não sejamos, porém, ingénuos: o problema não é de hoje, nem de ontem, nem de anteontem. E tipos que andam munidos de facas não o fazem porque são talhantes nas horas vagas nem as balaclavas são para proteção do novo coronavírus; se não fosse o futebol encontrariam outro motivo para guerras urbanas porque para eles é mais importante o domínio territorial do que um golo de Pizzi ou de Acuña.
Mas isto também não pode servir de desculpa para os dirigentes desportivos. Porque é, infelizmente, em nome dos clubes que assistimos a episódios violentos nas ruas onde passeiam os nossos filhos; são os símbolos do Sporting e do Benfica que estão cozidos nos cachecóis e gorros ensanguentados após os confrontos que ocorreram no último mês.
É um erro analisar o tema na lógica tribalista habitual, de que «os meus criminosos são menos criminosos que os teus criminosos». O problema é maior. É, como tem insistido Frederico Varandas, um problema do e de Estado. Sociológico, económico, de segurança interna. É complexo e por isso muito chato para o poder político.
Mas é também um problema dos clubes, neste caso dos dois grandes da capital. No Sporting viveu-se o tempo da cumplicidade assumida entre uma Direção liderada por Bruno de Carvalho e a sua principal claque com resultado catastrófico chamado Alcochete; no Benfica vive-se há muito uma cumplicidade escondida com problemas constantes em vários estádios e locais públicos. Com a entrada de Varandas, mudou o discurso: a Direção do Sporting passou a atacar a sua principal claque e deu-se mal; no Benfica, Luís Filipe Vieira tentou, há mais de 10 anos, enveredar por uma estratégia mais musculada e também se deu mal: os No Name Boys, a principal claque do Benfica, nunca teve um corpo central nem liderança única, é antes um conjunto de subgrupos com orgânicas próprias fruto de uma idiossincrasia social emaranhada. A solução de Vieira foi então outra, com fazem muitos dirigentes - tê-los por perto é mais seguro. O problema foi a lei de registo de claques. Como grupo, os NN nunca se registaram e os rivais, em determinada altura, aproveitaram a deixa: mesmo que só uma ínfima parte das suas principais claques estivesse registada (um embuste, portanto), FC Porto e Sporting cavalgaram juntos contra o ponto fraco do Benfica, que perante os golpes foi respondendo com silêncio ou com argumentos de um mundo paralelo como o de não haver claques no clube, antes grupos organizados de adeptos, já pensando na nova lei contra a Violência no Desporto que aí vinha.
Lamentar ou recriminar atos praticados por membros de uma claque seria admitir que de alguma forma vinculam aqueles garotos, homens e mulheres ao clube. Qualquer pronúncia das águias poderia deitar por terra a estratégia comunicacional e jurídica que sustenta a defesa de vários processos de apoio ilegal às claques que já valeram vários jogos à porta fechada (castigo que todos vão agora cumprir, veja-se a ironia). É um silêncio autoimposto, forçado, mas que causa outros tantos danos à sua imagem na opinião pública, cada vez mais distante dos princípios que fundaram o Sport Lisboa e Benfica.
Carlos Pereira teve o mérito de ser o primeiro, publicamente, a lançar a questão: se o desconfinamento está a ser generalizado, porque não num estádio de futebol? Se será possível assistir a espetáculos em espaços fechados, com a devida distância entre espectadores, porque não permitir a presença de duas mil pessoas espalhadas em bancadas para 10, 20, 50 mil pessoas? Pelo impacto mediático que um cinema meio cheio não tem? Pelo aglomerado de gente em transportes públicos para acederem aos estádios? Iriam os comboios mais cheios que aqueles que transportam trabalhadores para as plataformas logísticas da Azambuja? Ou para as praias? Com bom senso e vencendo o medo, tudo é possível. Até mostrar que os adeptos, os verdadeiros adeptos, não representam perigo social.