Para não ter de falar sempre do mesmo
Da janela da minha casa vejo a serra. Tem o mesmo verde dos dias de sempre. Às vezes, mais intenso, quando o sol encontra uma nesga nas nuvens pouco primaveris, e corre numa direção atlântica, como se tivesse uma eterna saudade do mar e do tempo em que os homens destes lugares acreditavam em sereias encantadas, que os chamavam para amores proibidos. Mas não te posso mentir. Tenho saudades dos caminhos e das pessoas. Também eu quero de volta o lado menos intimista da vida e, também por isso, fico feliz para poder conversar contigo, ter este privilégio tão especial de guardarem para mim um espaço para te falar e para te dizer o que a serra me diz: «vem aí, não tarda assim tanto, o dia em que me poderás revisitar, percorrer veredas, voltares a queixar-te desta minha aragem fria e húmida, que só te apetece nos meses de verão. Vem aí o dia, num breve que só por estas tão estranhas circunstâncias não entendes, em que as coisas simples e belas voltarão a não ter a importância que tu só agora lhes dás. Podes achar que é daqui a uma quase eternidade, que a vida humana, ao contrário da minha, é menos de uma vírgula no imenso universo e que, por isso, nenhum ser humano tem tempo para viver um tempo interrompido. Mas estas, embora cruéis, são, afinal, as únicas maneiras que a natureza tem para te despertar e te lembrar, a ti e aos outros, que os homens não são deuses.»
Assim me falou a serra, lembrando-me ainda que encontraremos sempre mais força no futuro do que no presente, ou nas lembranças do passado. E que o Homem não faz sentido sem os outros Homens, mais tudo o que da natureza recebeu e o que porventura criou e haverá de criar.
Repara, somos muito dados a pensar que às coisas mais importantes se sucedem as coisas que vão diminuindo de importância até se tornarem dispensáveis, de tão pouco importantes.
Porém, nestes momentos, percebemos, todos, que nada do que estávamos habituados a ter e perdemos, mesmo que por apenas um certo período de tempo, é pouco importante. Veja-se o desporto, o futebol, para ir mais diretamente ao hábito nacional, veja-se como é importante. Não foi por acaso que os romanos achavam que era mais fácil governar o povo quando lhe davam circo para ver.
Mas, agora, o circo fechou em todo o mundo e, de repente, todos nós ficámos demasiado sérios, sem o mesmo prazer de vida. É bem verdade que o futebol é o mais importante das coisas menos importantes. Porém, nestes tempos de preocupação e de inquietação, o espetáculo desportivo ganha uma renovada dimensão, porque se tem como certo que o seu ressurgimento representará o ponto de viragem de que todos estamos à espera para recuperarmos as nossas vidas, os nossos hábitos, mas também os nossos vícios.
Do lado do mar, sopra, agora, um vento que trouxe mais azul ao céu. A tarde ficou mais luminosa e a serra ainda mais verde. Será assim nas nossas vidas. Virá o dia em que o sol vai abrindo, começará, tal como hoje, por uma nesga por entre as nuvens, até fazer regressar a luz que ilumina os mares, os rios, as serras, as planícies e, só então compreenderemos melhor, também os Homens.
Não sei se tu, que tão pacientemente leste esta crónica do tempo parado, achaste por aqui algum sinal de esperança e de entretenimento. Sei que este texto nunca poderá substituir um belo jogo de futebol, uma bela corrida de barreiras, uma entusiástica prova desportiva. Mas será, ou pretende ser, uma razão para se passar bem, ou seja, de maneira diferente, anti-obsessiva, uma bocadinho de uma solitária manhã de sábado.