Os três macacos sábios
NINGUÉM me tira da cabeça que isto é a mãe natureza a pôr na ordem o maior predador da Terra: o Homem. Destruímos florestas, rios e atmosfera. Exterminámos animais e árvores. Comemos vacas, porcos, cães, gatos, baleias, tubarões, baratas ou formigas. Sugámos o interior do planeta e todos os pedacinhos de ar acima de nós: da troposfera à exosfera. Fomos à Lua e só não pusemos o pé em Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno porque (para já) é impossível. Insatisfeitos e famintos, até nos matamos a nós próprios. Agora, meus caros (ninguém me tira da cabeça), a mãe natureza irritou-se e voltou a dizer basta. Já o dissera por diversas vezes (tuberculose, varíola, gripe espanhola, gripe asiática, tifo, febre amarela, sarampo, malária, ébola ou h1n1) e sempre atuámos como os três macacos sábios: tapámos olhos, ouvidos e boca. Agora, humildes e tementes a Deus, dizemos: calma, isto vai passar. E vai. Se Deus quiser, vai. Depois, daqui por um mês ou um ano, voltaremos a exterminar florestas, rios, atmosfera e animais. E outros humanos. Deitaremos no lixo os três macacos sábios e voltaremos a destapar olhos, ouvidos e boca. Porque a razão é só uma: estamos sempre com fome. De tudo e de todos. De algo que mexa.
HÁ a fome e a velocidade. Queremos correr mais depressa, andar em aviões mais rápidos e possuir automóveis que atinjam velocidades cada vez mais elevadas. Queremos sempre estar onde não estamos, como cantou António Variações. Há 50 anos o recorde do Mundo dos 100 metros era 9,95 (Jim Hines), agora é 9,58 (Usain Bolt): 3,7% de progresso. O recorde da maratona era de 2.09.29 (Ron Hill), agora é 2.01.39 (Eliud Kipchoge): 6,1%. O recorde do lançamento do peso era 21,78 m (Randy Matson), agora é de 23,12 m (Randy Barnes): 6,1%. O recorde do salto em altura era de 2,28 m (Valeriy Brumel), agora é de 2,45 m (Javier Sotomayor): 7,5%. A progressão dos recordes mundiais indicia, pois, que estamos mais rápidos (100 metros), mas, sobretudo, muito mais resistentes (maratona), muito mais fortes (peso) e muito mais ousados (altura). Pode ser bom prenúncio (ninguém me tira da cabeça) para o que ainda há de vir. Precisamos de ser resistentes, fortes e ousados.
A 25 de janeiro de 2004, quando Fehér morreu, muita gente chorou. Pareceu que tudo mudaria. Um momento tão impactante como a morte do jogador húngaro poderia mudar cérebros e mentalidades. Talvez o futebol português, por exemplo, passasse a ser um mar de rosas. E foi. Durante dois dias, foi. Dezasseis anos depois, há quem acredite que, após isto, o Mundo (e o futebol) será um mar de rosas, cravos e malmequeres. Não será. Garanto que não será. Ninguém me tira da cabeça que não será. Voltaremos, claro, a ser predadores. A trucidar, com fome e ânsia, tudo o que mexa ao nosso lado.