Os mapas
O mapa (1)
Haviam oferecido ao Chefe (novamente) um mapa do país - já era para aí o quinto ou o sexto. Os anteriores ele perdera-os, ou apontara por cima palavras chave para os seus discursos, ou assoara-se a eles ou colocara-os debaixo de uma garrafa de vinho para não sujar a mesa, enfim: o Chefe distraía-se.
Tinha, no entanto, certos cuidados. Por exemplo: limpava todas as humidades e nódoas líquidas - vinho e outras substâncias - apenas com a parte do mapa que representava o interior do país - a zona mais seca.
Um Auxiliar mais letrado tentara, há vários meses, explicar ao Chefe que o mapa era apenas uma representação.
O Chefe, porém, não entendia. Não dava atenção a tais preciosismos técnicos.
- Não quero saber de teorias - dizia.
O Chefe tinha na verdade um problema intelectual que era o seguinte: não conseguia diferenciar a realidade da representação da realidade.
Depois de, em tempos de seca, tomar a decisão de escrever com a caneta: «Chuva!», por cima do território mais necessitado de água era com absoluta estranheza que verificava, mais tarde, que, de facto, não chovera nessa zona.
Não deixando de pensar em qual dos seus adversários poderia estar a boicotar a sua acção enérgica que visava acabar de vez com a seca, o Chefe, murmurava, intrigado, para si próprio:
- Mas se eu escrevi «chuva» no mapa...
O mapa (2)
Mas como dissemos, mesmo assim, o Chefe estava sempre a perder ou a danificar os mapas da pátria. No entanto, não era distraído por completo; por exemplo: tinha sempre, no bolso do seu lado direito, intacta e bem protegida, a programação dos vários canais televisivos.
Uma teoria sustentava isto: tudo o que não cabe dentro da televisão - dizia o Chefe - não pertence ao país. Está fora do nosso território.
Para ele o mapa mais real do país era o aparelho de televisão que tinha em sua casa.
Era esta a teoria pessoal do Chefe.
- Para que quero eu o mapa? - exclamava. - O que eu preciso é de ter todos os canais de televisão ligados!
- Portanto - disse um dos Auxiliares - se bem percebo, o senhor Chefe vai vendo o que passa nos diversos canais e actua, com medidas enérgicas ou mesmo muito enérgicas, de modo a resolver os problemas. É isso?
- Mais ou menos (respondeu o Chefe). É preciso aprofundar um pouco.
Fez-se silêncio na sala. O Chefe ganhava balanço.
- Aprofunde, Chefe.
- Aprofunde, aprofunde.
O Chefe, em silêncio concentrado, preparava-se então para aprofundar.
O mapa (3)
OChefe aprofundava. Para isso utilizava uma técnica particular, que era repetir.SASSASAS - O meu conceito de fronteira - repetiu o Chefe - é definido pelas linhas que delimitam o ecrã da televisão. Tudo o que surge fora do ecrã da televisão não pertence ao nosso país, está já para lá da fronteira. Estão a entender?
Um dos Auxiliares tomava apontamentos, enquanto o outro estava com a boca aberta, de espanto. Por vezes trocavam de funções.
Os dois, no entanto, como que tremiam; um tremor, diga-se, não físico ou corporal. Pelo contrário: um tremor intelectual. Havia em ambos a sensação de que estavam a viver um momento único, o momento em que uma ideia sai para o mundo, pela primeira vez, com a força incontrolável de uma bomba.
- Ah, se o Chefe pelo menos tivesse um bombardeiro, (murmurava para si próprio um dos auxiliares.) O que ele faria com um único bombardeiro!
Depois de recuperar o fôlego e de dar tempo aos Auxiliares para exercerem os seus olhares de admiração incontida, o Chefe disse, num tom definitivo, enquanto, com o seu polegar esticadinho, e com a intensidade da devoção religiosa, ligava o botão do seu ecrã de televisão:
- É este o meu país.