O vírus, o futebol e o vazio

OPINIÃO25.03.202003:00

1 Só por absoluta demência, já nem sequer ilusão, é que alguém ainda pode alimentar esperanças de que toda a estrutura financeira em que assenta o futebol profissional não vai levar um abanão de cima a baixo, quando, tarde ou mais cedo, o Terror estiver afastado. Ainda há dias lia a Associação Internacional dos Agentes de Futebol insurgindo-se contra a proposta da FIFA de limitar a 15% os direitos de intermediação dos agentes na compra e venda e de jogadores e, aqui por casa, via o presidente do Sindicato dos Jogadores, Joaquim Evangelista, declarar que os jogadores não poderiam pagar a factura do Covid-19. Tanta arrogância, no primeiro caso, e tanta ingenuidade, no segundo caso, foram rapidamente ultrapassadas pela velocidade vertiginosa a que todos os acontecimentos e previsões são ultrapassados nos dias que correm. Hoje, terça-feira, escutei na rádio uma notícia, que não ouvi com atenção, de que o empresário Jorge Mendes ia fazer uma doação de material médico de tratamento do Covid-19 e também Cristiano Ronaldo, decerto arrastado ou convencido por Mendes, iria fazer o mesmo. Não retive o quê ao certo nem os respectivos montantes, mas, no caso de Ronaldo, o seu gesto só peca por tardio. Há mais de uma semana atrás constou que ele teria posto os seus hotéis à disposição do Ministério da Saúde para albergar doentes do vírus, em caso de necessidade, e que pagaria as despesas médicas respectivas. Mas era boato, e não já o primeiro falso boato do género posto a correr e respeitante a Cristiano Ronaldo. De facto, o que se viu de palpável, nos dias seguintes, foram as fotografias da quarentena de luxo de todo o clã Ronaldo na sua sumptuosa casa da Madeira, retiradas do Instagram da irmã, que as fazia acompanhar da legenda «home, sweet home». Uma verdadeira provocação a todos os portugueses que nestes dias vivem enfiados em apartamentos com os metros quadrados contados por pessoa, alguns sem sequer disporem de uma simples varanda, quanto mais uma ampla piscina exterior e outra interior, jacuzzis, ginásio, e o mais que o dinheiro sem fim consegue comprar e o Instagram impudicamente não se importa de revelar. Verdadeira lição deu a cientista espanhola a quem uma jornalista perguntou para quando haveria uma vacina contra o Covid-19 e ela respondeu: «Não me pergunte a mim que ganho 1.800 euros por mês; pergunte ao Messi, que ganha 8 milhões». Grande resposta: por mais que valham no mercado os deuses dos estádios, é nestas alturas que se vê o que vale verdadeiramente o trabalho de cada um.
Pretender que tudo fique na mesma para os bilionários do futebol depois de o mundo ter vencido a maior ameaça global à vida humana, graças ao trabalho e ao valor de cientistas e médicos, e quando a seguir terá de enfrentar uma crise económica que lançará centenas de milhões no desemprego e levará milhões de empresas e centenas de clubes à falência, é mais do que cegueira, é irremediável estupidez. Não, nada ficará como antes. E ainda bem. Pode ser que o futebol fique mais puro, menos dos mercenários e mais dos jogadores que o amam, menos dos agentes e dos dirigentes e mais dos adeptos.

Os clubes, aqui e lá fora, vão recorrer maciçamente ao lay-off, vão despedir, vão reduzir ordenados e suprimir prémios, vão exigir mais em troca de menos, e, mesmo assim, muitos deles não vão sobreviver. Sem empresas prósperas não haverá anunciantes e sem anunciantes não haverá receitas de televisão, nem patrocínios, e os prémios das competições europeias, que também dependem dessas receitas, terão de reduzir-se dramaticamente. Como sucede com os países, os clubes que estiverem menos endividados terão uma hipótese de sobreviver, em novos moldes; aqueles, como o FC Porto (que acumulou 451 milhões de dívida, que permanecem por explicar), dificilmente deixarão de desaparecer e ter de renascer com outro nome, noutro lado e, forçosamente, com outros dirigentes. E aqui não haverá mutualização europeia da dívida: quem tiver dinheiro, sobrevive; quem não tiver, vai à vida. Acreditem, nada voltará a ser como dantes.

3 Ao contrário da dúvida ontem lançada pela manchete de A BOLA, Frederico Varandas não foi «voluntário à força» para servir, enquanto médico do Exército, na luta contra o coronavírus. Segundo uma investigação da TVI, a cujas conclusões tive acesso e em que faço fé, ele voluntariou-se, mesmo antes de saber que o Exército iria, de qualquer maneira, convocá-lo. E, mesmo depois de convocado, poderia recusar pedindo passagem à reserva. É lastimável que se pretenda fazer passar um gesto de coragem e generosidade por oportunismo - mas sendo este o país da inveja e da maledicência, não me espanta por aí além. Como não me espanta que o dito Movimento Sou Sporting aproveite, não apenas para lançar a insinuação, como ainda para usar a situação como pretexto para pedir a demissão do presidente do Sporting, pela suposta incompatibilidade entre presidir ao clube e estar temporariamente ao serviço do país, numa situação declarada de emergência nacional. Há gente que consegue mesmo ser pequenina até nos piores momentos!

4 Rui Pinto concluiu mais de um ano em prisão preventiva pela práctica de um crime, na forma tentada, a que corresponde a pena máxima de três anos. Admitindo que ele - um réu primário, e com todas as atenuantes, entre elas a de ter contribuído decisivamente para a descoberta de coisas como o Football Leaks ou o Luanda Leaks - levaria, mesmo assim a pena máxima de um juiz, certamente enraivecido, o normal seria depois cumprir um terço ou, na pior hipótese metade da pena. Ou seja, um ano ou um ano e meio. Temos, pois, que Rui Pinto já cumpriu de prisão preventiva, neste momento, aquilo que provavelmente teria a cumprir se fosse julgado culpado e condenado à pena máxima. Quem é que ainda acredita que ele está mesmo preso só por ter violado a correspondência da Doyen, essa associação de bem-fazer?

5 Noutro tabuleiro, a CMVM chumbou a OPA do Benfica SAD às suas próprias acções, essa misteriosa operação que nunca ninguém conseguiu perceber e nunca ninguém se deu ao trabalho de explicar direito. Eu, francamente, também não percebi, mas a CMVM, que é quem tem a obrigação legal de perceber destas coisas, veio explicar que ali havia grossa marosca. Não sendo nada que me diga respeito ou que me interesse particularmente, vou, todavia, seguir com interesse as cenas dos próximos capítulos.

6 E, pela primeira vez em muitos anos, não tenho matéria que dê para encher o número de caracteres que me estão generosamente reservados nesta página. Peço desculpa aos leitores, mas não há como inventar sobre o vazio. E pior ainda vai ser para a semana.