O regresso do Chefe

OPINIÃO19.07.202004:00

Sátira política. Histórias de o «Senhor Kraus» neste intervalo. O Chefe e os seus Auxiliares.         Ainda no rescaldo de umas eleições.

1-O Regresso

OS Auxiliares estavam radiantes: há já algumas semanas que não auxiliavam ninguém, mas agora toda essa vontade de Auxiliar poderia novamente ser aplicada.
Muitos deles haviam tentado durante o período de ausência do Chefe precisamente auxiliar, mas os objectos do auxílio pareciam como que fugir. Alguns, os vivos, fugiam mesmo. Era visível: corriam; portanto, um pé depois outro e desapareciam de vista: era um facto, os necessitados fugiam quando os Auxiliares se aproximavam. Mesmo pessoas de idade, com dificuldades de entendimento e locomoção, mesmo essas, subitamente, num acesso surpreendente de vitalidade, fugiam, escapavam-se, entravam em ruas apertadas e escuras - velhinhos e velhinhas é deles que falamos - e, de repente, desapareciam, ninguém os via mais. Os Auxiliares ficavam de mãos a abanar. Só queriam auxiliar.
Agora todo esse período acabara. O Chefe estava de regresso!
Em muitos dos Auxiliares a alegria era tanta que até se registavam profundas alterações fisiológicas. O coração batia como só o coração dos selvagens. Em silêncio, um dos Auxiliares, sentindo o seu coração bater ao ritmo das antigas caçadas a índios, murmurar mesmo para si próprio: nem pareço um homem civilizado! Estava comovido.
O Chefe regressou; o Chefe, o Chefe, o Chefe regressou!

2-Ainda o Regresso

OChefe subiu as escadas e virado de costas para a porta principal, com os braços abertos, exclamou muito alto:
- Estou de regresso!
- Bravo!, Chefe - disse um dos Auxiliares - mas é para este lado que regressa.
- Claro... - disfarçou - estava a ver se ainda se lembravam do meu humor.
O Chefe virou-se e agora sim de frente para a porta principal do edifício, levantou de novo os braços e de novo exclamou:
- Estou de regresso!
- Bravo, Chefe, agora acertou no lado.
Sorriram uns para os outros: todos juntos de novo.
- Vamos ao trabalho, sem demoras! - disse o regressado. -Chame-me já o vice-presidente! E quero uma reunião geral de técnicos! Já!
- Mas estão todos a trabalhar, Chefe.
- Isso agora acabou! Reunião geral!
- Chefe... - murmurou o Auxiliar, com timidez - Chefe: é bom tê-lo de volta!

3-Apontamentos

NO dia seguinte às eleições, no Café, na mesa do costume, o senhor Kraus apontou no seu caderno:
Observação a posteriori (1)
No contacto com a população mais simples, alguns políticos dão beijos na cara como quem do cais diz adeus ao barco que parte para nunca mais voltar.
Relação entre povo e políticos (1)
Depois de uma campanha eleitoral animada, a grande vantagem de qualquer eleição democrática é a de o povo sair, finalmente, da sala de estar dos políticos.
É uma sensação de alívio que alguns eleitos descrevem como semelhante ao momento em que uma dor intensa, por qualquer razão obscura, termina.
Observação a posteriori (2)
Os políticos, quando beijam velhos cidadãos, lembram a primeira dentada tímida do verme no corpo que já não tem meios para a fuga nem porta de saída.
Relação entre povo e políticos (2)
Depois de qualquer eleição a sensação dos políticos - quer tenham perdido quer tenham vencido - é a de que o povo mais profundo acaba de entrar todo num comboio, dirigindo-se, compactamente, para uma terra distante. Esse povo voltará apenas, no mesmo comboio, nas semanas que antecedem a eleição seguinte.
Esse intervalo temporal é indispensável para que o político tenha tempo para transformar, delicadamente, o ódio ou a indiferença em nova paixão genuína.
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