O regresso do ‘autocarro’

OPINIÃO17.08.202107:00

Tantas cautelas retiraram iniciativa ao Famalicão e foi com natural facilidade que os portistas marcaram dois golos e prometeram outros tantos

HÁ dois anos, o Famalicão surpreendeu pela  irreverência do seu futebol e,  principalmente, pela forma revolucionária como encarou a competição, provando não haver incompatibilidades insanáveis entre a defesa do resultado e a salvaguarda do espetáculo. Liderou a classificação na Liga até  à sétima jornada, completou a primeira volta no terceiro lugar, atrás de Benfica e FC Porto, e terminou o campeonato na sexta posição. Uma temporada brilhante e merecedora de ficar registada em todos os compêndios.
Para quem já não se lembra, o treinador era João Pedro Sousa, que trouxe também um novo estilo de abordar as incidências do jogo, fazendo-o em tom normal, com serenidade, educação e um discurso entendível. Dessa equipa famalicense faziam parte, entre outros,  Toni Martínez, Pedro Gonçalves e Diogo Gonçalves.
Refiro-me à época de 2019/2020, tão próxima no tempo e  tão distante na memória das pessoas. Se assim não fosse, os adeptos famalicenses teriam vibrado com a forte possibilidade de empatarem o jogo com o FC Porto, anteontem, sem esconderem, no entanto, a incomodidade pelo facto de o futebol exibido pelo  Famalicão ter perdido o encanto que o tornou justamente apreciado, ao abdicar da sua veia diferenciadora para engrossar a vulgaridade e sujeitar-se aos padrões das novas tendências estratégicas e táticas.

NÃO é minha intenção estabelecer comparações entre os treinadores.  Quer João Pedro Sousa, quer Ivo Vieira merecem-me respeito e consideração, tão somente pretendo chamar a atenção  para uma dúvida que ainda não vi esclarecida, nem sei se algum dia irei ver, e que se prende  com aquilo que estará certo ou errado sobre uma questão básica:    impor ao coletivo um desenho tático escolhido em catálogo e sem atribui relevância ao individual, ou gerar esse desenho a partir das características dos elementos que compõem o plantel, fazendo com que todos, ou quase todos, encaixem no puzzle, com as correções  que será sempre preciso fazer  através dos chamados reforços, escolhidos com critério, em função dos objetivos desportivos e do poder financeiro dos emblemas.
Trago este assunto à colação depois do que se assistiu em Famalicão, em que a equipa da casa, por razões que me escapam, se apresentou com o propósito de não deixar jogar. Uma prática generalizada, aliás, com fortes responsabilidades dos treinadores, demasiado embrenhados nas teias do  contra jogo, que é isso mesmo, excesso de preocupação com o oponente em vez de tentarem extrair  dos seus jogadores tudo o que eles podem dar.
De certa maneira foi assim que o clube minhoto encarou o jogo com o FC Porto: em vez de motivar o seu pessoal para ganhar, preparou-o para não perder. Escusadamente, porém, na medida em que possui gente de qualidade, que executa bem e gosta de jogar no campo todo. Tantas cautelas retiraram iniciativa aos famalicenses e foi com natural facilidade que os portistas marcaram dois golos e prometeram outros tantos. 

Amoda dos três centrais não é remédio  para todos os males. A ideia é interessante, basta reparar no exemplo do Sporting, desde que bem interpretada e melhor trabalhada.
Uma coisa é o que faz Rúben Amorim, com um futebol ofensivo, assente na organização, na velocidade e na intensidade; além de agradável, espetacular e que o público gosta de ver, independentemente da preferência clubista. Outra, nos antípodas, é a adulteração desse sistema, fazendo recuar o futebol luso aos tempos em que se estacionava o autocarro à frente da baliza para garantir o pontinho da ordem, que é o que os cinco defesas expressam, mais os quatro/cinco médios acantonados em duas linhas juntas que cabem num terço do campo e ainda sobra espaço.
Dizem-me que não são três centrais, mas sim  três defesas apenas, porque os restantes, no mapa das equipas, aparecem identificados como médios. Conversa fiada. O sistema 3x4x3 é poderoso, mas para se ter sucesso em palco é preciso encontrar os atores que melhor interpretem cada papel.  
Edificada a base, então, sim, tudo fica mais simples no sentido de fortalecer a estrutura com precisão: primeiro identificam-se as deficiências e depois investe-se nas correções. É o que o Sporting está a fazer, cujos exemplos de Rúben Vinagre (Nuno Mendes) e Ricardo Esgaio (Pedro Porro), mais Ugarte (João Mário), traduzem com fidelidade. Eis a diferença entre a contratação criteriosa e a aquisição avulsa de praticantes, não por fazerem falta, mas por serem vistos como boas oportunidades de negócio.  
Rúben Amorim chamou a atenção para um aspeto determinante, mas ninguém lhe terá ligado. Quem pensa que para jogar num sistema de três centrais basta acrescentar um terceiro aos dois que existem na linha de quatro defesas corre o risco de cometer um erro de avaliação grosseiro e comprometedor, razão pela qual, na ausência de mais rica capacidade argumentativa, está a subverter-se um modelo arrojado numa versão atualizada da  tática do autocarro. As voltas que o futebol dá…