O regresso da batalha no pântano
Uma faísca em Braga, convenhamos que não pequena, ateou o fogo que rapidamente se tornou incontrolável. Durante dois dias, as chamas derreteram tudo e todos por onde passavam. A dignidade, a honradez, a civilidade, o bom senso e todo o edifício do futebol português sofreu danos, não sei se irreparáveis, mas, pelo menos, dolorosos e profundos.
Do incêndio à guerra, foi um palmo mal medido. De repente, o país, mais atónito do que divertido, assistiu ao regresso das grandes batalhas do pântano em que o futebol português, a custo, tem vindo a atolar-se.
Das forças em presença, ninguém chegou a casa sem, pelo menos, uns salpicos de lama, mas houve certamente quem se olhasse ao espelho e nem se reconhecesse, tal era o lamaçal.
As batalhas continuaram por jornais, rádios e televisões. Por Twitters, à maneira de Trump, por Facebooks e outras redes sem rede. E foi ver esses pobres rapazes, que são apenas carne para canhão de ridículos generais sem exército, a escreverem e a vociferarem de acordo com a agenda estabelecida e de acordo com a excitante vontade dos grandes líderes.
Foi a vez, então, das altas autoridades mandarem avançar os comunicados oficiais. Ideias rasteiras, pensamentos pequeninos, solidariedades provincianas. Lá do alto da montanha de uma moralidade pacóvia e infinitamente chata, se decidiram os obrigatórios inquéritos e se propuseram as habituais consequências.
Não sabemos ainda o número de baixas, mas é elevado. Procuram-se sobreviventes por debaixo dos escombros, teme-se que ninguém regresse sem sequelas.
Em tempos idos, já houve uma guerra real, entre países, por causa do futebol. Mas também já ficámos a dever, ao futebol, a paz em tempos de guerra. Aqui, neste cantinho à beira mar plantado, o futebol é, ele próprio, a guerra. Do mal o menos. É verdade que andam por aí uns quantos vencidos da vida a diluir a fúria numa piromania de caixotes do lixo a arder e de autocarros em chamas. Mas, de uma maneira geral, o povo continua a ser sereno, a ter uma paciência de santo.
Ora, a que se ficou a dever esta insanidade futeboleira? A crimes de desVARrgonha. Ou seja, numa versão mais justiceira, a diversos crimes de mentiras e vídeo. Porque um árbitro faltou dez centímetros à verdade, porque um videoárbitro faltou uma quantas dioptrias à realidade dos factos, porque inclinou um jogo para o lado azul do campo. E foi isso que fez explodir de raiva aquele senhor de gravata vermelha para quem se apontaram as luzes da ribalta e dezenas de microfones e que produziu declarações fulminantes, que geraram declarações incendiárias, que, de repente, puseram o país inteiro a declarar o estado de guerra do futebol português.
Entretanto, à hora em que escrevo, as tréguas não foram assinadas, pelo que se espera que a coisa não acabe assim, sem vencedores nem vencidos. Vem aí, ainda, muito futebol para fustigar, muitas arbitragens para fulminar e muitos videoárbitros para se autossuspenderem.
A coisa só acabará lá mais para o fim da primavera, quando o campeonato estiver, enfim, decidido e já não valer a pena gastar cartuchos com um campeonato já tão defunto.
No rescaldo da batalha, uns hão de celebrar e outros hão de esquecer. Sempre assim foi, sempre assim será, até regressar nova época e novas guerras, porque lama não irá, nunca, faltar.
Para já, e depois de tudo o que se passou, sinceramente, acho que o futebol português deve cumprir, pelo menos, dez dias de luto e pôr a sua bandeira a meia haste. Rezar dez ave-marias e ir dormir.