O (real) poder dos adeptos
Talvez os burocratas, de fato nos escritórios, se riam da ideia de que o futebol é do povo. Só há um problema: é que é mesmo
HÁ duas formas de olhar para a ridiculamente curta vida (pelo menos esta primeira vida, porque não tenhamos dúvidas de que a ideia terá pelo menos tantas como os gatos...) da Superliga Europeia: os mais pragmáticos dirão que os planos de um grupo de poderosos ruíram perante interesses ainda mais poderosos do que eles; os mais românticos olharão para aquela segunda-feira como o dia que marcou a vitória do povo sobre os burocratas. São duas formas muito diferentes de analisar a questão. E, se calhar, nenhuma delas está necessariamente errada.
Seria ingénuo, é um facto, dizer que as pressões da UEFA, da FIFA ou dos governos - em especial do de Boris Johnson - não tiveram algum peso (se calhar mais do que algum, convenhamos...) para que 10 dos 12 clubes fundadores da Superliga Europeia fizessem marcha-atrás logo no dia seguinte ao anúncio da sua criação. Seria demasiado naif olhar para as ameaças de banir os ideólogos das provas europeias ou os seus jogadores das principais competições de seleções de ânimo leve e achar, por um segundo que seja, que elas não tiveram alguma influência no que se passou a seguir. Mas, pensando mais friamente e com uma maior distância, alguém admite que os clubes não estariam preparados para os gritos e impropérios de Ceferin e Infantino? Ou até para telefonemas duros de primeiros-ministros, reis ou presidentes? Custa acreditar que não. Ou melhor, é menos difícil acreditar que aquilo para que os clubes não estariam preparados, em especial os ingleses, era para a pressão que viria de baixo. E é por isso que não se deve, também, ser ingénuo ao ponto de menosprezar a importância que a reação popular teve, de facto, no desfecho desta mini novela. Porque teve.
É, aliás, interessante olhar com um pouco mais de atenção para o que se passou em Inglaterra. Como se sabe, os principais clubes ingleses (pelo menos todos os que integraram a lista de fundadores da Superliga Europeia) são propriedade privada, de milionários, ou grupos milionários, que em alguma altura os compraram e passaram a fazer deles (ou assim se pensava até agora...) aquilo que muito bem entendem, sem dar cavaco a ninguém. Terão, portanto, pensado os donos de Manchester City, Manchester United, Chelsea, Liverpool, Arsenal e Tottenham que os seus adeptos olhariam para esta decisão empresarial como olham para a escolha de um treinador ou a compra/venda de um qualquer jogador: comentam, mostram-se a favor ou contra, à distância, mas não se metem e ficam à espera de ver no que dá. O problema é que neste caso não foi assim. Desta vez os adeptos saíram à rua e confrontaram-nos. Fizeram-lhes frente. Disseram-lhes, de forma clara, que não queriam ver os clubes que amam envolvidos numa competição que colocaria em causa a própria essência do futebol. Atrás do povo (de outra forma seria mais complicado, perceba-se) vieram treinadores e jogadores, alguns deles empregados dos clubes em causa. E os poderosos cederam. Como só podiam ceder. Porque, feitas as contas, houve, provavelmente, uma questão em que os 12 fundadores só pensaram depois de verem o clamor popular que a sua decisão provocou: que benefício financeiro lhes traria uma Superliga Europeia que quase ninguém visse?
É essa, portanto, a lição que fica, para toda a gente: sendo o futebol cada vez mais um negócio que movimenta muitos milhões nas transferências de jogadores, o que o alimenta verdadeiramente é quem paga para vê-lo. São, única e exclusivamente, os adeptos que justificam o investimento em direitos televisivos ou em publicidade. Talvez os poderosos, de fato nos escritórios, se riam da ideia de que o futebol é do povo. Mas a verdade é que é mesmo. E talvez agora todos aprendam que convém tratá-los com um pouco mais de respeito. Ou arriscam-se a ficar a jogar sozinhos. E pobres...