O que vem aí

OPINIÃO18.03.202022:07

A natureza tem uma estranha forma de repor o equilíbrio das coisas e a história  mostra-nos que as epidemias foram determinantes para a mudança da nossa forma de viver. A Peste Negra, por exemplo, que matou metade da população na Europa no século XIV, foi o principal motivo para fazer cair a sociedade feudal.  Os cidadãos passaram a ter direitos anteriormente barrados (como a posse de terra e o direito a receber um salário pelo seu trabalho), a economia de mercado foi emergindo e estimulou-se a criatividade para se chegar a uma das épocas mais vibrantes da humanidade: o Renascimento.  


NÃO quero obviamente fazer um paralelismo com o momento que vivemos atualmente com a pandemia do Covid-19 (apesar da coincidência histórica e geográfica de também a peste bubónica ter nascido na China, transmitida por pulgas que viviam em ratos e transportada para a Europa via Itália, nomeadamente os mercadores genoveses que faziam a Rota da Seda), mas é garantido que o mundo não será o mesmo quando aparecer uma cura para o bicho e voltarmos todos às nossas vidas. A dúvida é saber o quão diferentes ficaremos. Mais solidários e menos materialistas? Menos globais e mais locais? Os nossos dados serão ainda menos protegidos com  as experiências que estão a ser feitas de controlo de movimentos através dos telefones para mitigar o contágio?    

E o que mudará no desporto? A nível motor, nada: todos continuarão a correr, saltar, chutar, atirar, suar. Mas vêm aí mudanças na economia do desporto e no futebol em particular. Analisando as perdas diretas imediatas e as perdas a médio prazo, é seguro afirmar que o futebol como produto vai desvalorizar-se. Os patrocinadores vão querer pagar menos porque terão menos liquidez para conter a crise e o próprio valor das transferências tenderá a baixar. Será um ciclo vicioso.

TALVEZ isso não seja necessariamente mau. O mercado do futebol assistiu nos últimos anos a uma escalada especulativa sem travão. No mesmo período temporal (a partir do início da década de 10 deste século) assistimos a dois fenómenos revolucionários: a renegociação de direitos televisivos em Inglaterra e a entrada de capital estatal (Manchester City e Paris Saint Germain, em particular) disfarçado de agentes económicos. Desde que houve um clube-nação (PSG) a pagar €222 milhões por um jogador (Neymar) e os pequenos e médios clubes ingleses passaram a ter o dobro para gastar em aquisições, um jogador que antes valia €20 milhões passou a valer 40 ou 50. A partir de agora haverá uma retração, também possível ao nível dos salários (nos novos contratos, claro). Mas não sejamos líricos: o futebol romântico do amor à camisola não voltará; haverá apenas uma pausa na loucura. E, como em todas as crises, os mais desprotegidos é que vão pagar.    
Eaqui chegamos a Portugal. Esta crise vai causar  danos gigantescos em todos os clubes nacionais. Só falta perceber em que moldes: se ao nível do irreparável ou do definhamento sustentável. Aconteça o que acontecer, poderemos apontar culpas ao vírus mas isso seria enganador porque estaríamos a esquecer o essencial que vem a montante: tal como as economias que dependem em demasia de um setor estratégico arriscam-se a cair (o turismo está para Portugal como o petróleo para Angola), uma indústria anda no limbo se não diversificar o seu produto e não agir coletivamente. Nos últimos anos o futebol em Portugal apostou quase tudo na exportação de jogadores e em concentrar riqueza em dois clubes (Benfica e FC Porto), descurando o espetáculo em si, que deveria ser o primeiro objetivo. Num reino onde poucos têm muito e outros pouco ou nada têm, gera-se a discórdia, a mesquinhez, o compadrio e as dependências em nome da sobrevivência. A crise tem a virtude de destapar todos estes males. Seria bom aproveitar esta paragem para pensar noutro modelo de negócio e, fundamentalmente, em novos valores. Com novos ou velhos dirigentes.