O que é ser, hoje, do Belenenses

OPINIÃO24.11.201800:14

Ultimamente, andando pela rua ou vagueando em espaço público, tenho sido interrompido com alguma frequência: «Desculpe, lá, mas o senhor é do Belenenses clube ou é do Belenenses SAD?». E eu que até à primeira vez em que me interpelaram nunca tinha tido o assunto como dúvida existencial, passei a responder apenas na parte resumida da questão: «Sou do Belenenses clube!»
O mais fácil de explicar é que ninguém que tenha um sentimento de pertença, seja ele geográfico, social ou cultural, que o ligue a uma certa comunidade pode achar interesse em ser de uma sociedade anónima cuja designação, como o nome indica e define, é a ausência de uma identidade.


Ora se há algo que define o sentimento de pertença a um clube, ou ao que esse clube simboliza é a identidade. Um clube sem identidade até pode ser uma sociedade anónima, uma associação de cães com pulgas, ou um grupo de amigos do lince ibérico, mas não será, nunca, uma comunidade do indizível, como é, de facto, um clube como o Belenenses.


Quando eu nasci, o meu avô fez-me, nesse mesmo dia, sócio do Clube de Futebol Os Belenenses e, no entanto, não posso dizer, em amor à verdade, que desde esse dia fosse do Belenenses, porque ainda se passaram muitos anos até que eu tivesse consciência do que era ser de um clube. Por isso, que fique claro: não é de um clube quem apenas é sócio desse clube e paga as quotas, mas quem o vive, quem o sente entranhado na pele e na alma, quem o partilha com a família e os amigos, quem sabe que não teria crescido e aprendido a vida da mesma maneira.


Na minha juventude, as minhas maiores referências eram todas do Belenenses, a começar pelo meu pai e pela minha mãe, os meus avós, os meus primos, o Matateu, o Zé Pereira e o Vicente e ainda o Acácio Rosa, o Juiz Gouveia da Veiga e o inesquecível João Silva. Os lugares de culto eram o Manel da Calçada, o Amorim, a Chique, os Pastéis de Belém e o Salão Portugal. E os meus templos, não eram nem os Jerónimos, nem a igreja da Memória, mas o Restelo, porque já não sou do tempo das Salésias, e o tanque dos crocodilos do jardim colonial onde aprendi a nadar enfiado num cinto pendurado da ponte e onde me tornei exímio nas viragens em paredes escorregadias de musgos.


Um dia, o meu pai foi chamado por grandes belenenses e não menores amigos a prestar serviços de urgência no clube. Juntamente com o pai do José Mourinho, então guarda-redes da equipa de futebol, salvou o clube de descer de divisão. Nunca recebeu um cêntimo, mas recebeu uma taça horrorosa, uma palmadinha nas costas e anos de maledicências feitas de invejas e enxovalhos, porque o Belenenses, como outros, sempre teve dentro do clube os seus piores inimigos.


Irritado, o meu pai deixou de ser sócio, mas nunca, até morrer, deixou de ser do Belenenses. Nem eu. E logo se tornou para mim muito claro que ser do Belenenses está muito para além de ser do clube ou de qualquer trambolho, mais ou menos artificial, que dele nasça.


Não sei o que vai acontecer após este cenário fantasmagórico que está para durar, mas sei que se me perguntam se sou do clube ou da SAD, eu não hesito e digo que sou do clube, porque o clube é, de facto, a entidade que mais se aproxima dessa realidade universal, muito mais do que física, que é o Belenenses. Porque o Belenenses não é o futebol nem mesmo todas as modalidades desportivas somadas. O Belenenses foram, são e serão pessoas muito especiais, de alma e cultura belenense, os mais recentes dos quais  não têm de sentir vergonha por, apesar de tudo, continuarem a querer e a gostar que o Belenenses, seja com que equipa for, ganhe em campo.