O novo papel de Ronaldo

O novo papel de Ronaldo

OPINIÃO22.03.202305:30

Gonçalo Ramos merece ser neste momento o titular da Seleção. Se CR7 se adaptar e mesmo assim ajudar, ‘chapeau’ para o capitão

R EGRESSAM os jogos da Seleção Nacional e a grande questão coloca-se: como resolver a situação de Cristiano Ronaldo? O Mundial-2022 do Catar terminou mal e com muitas questões no ar sobre a atitude do capitão e o relacionamento com o ex-selecionador Fernando Santos. Porém, independentemente do que ainda venha a ser esclarecido (o que duvido), o mais importante já não é tanto o que aconteceu mas o que ainda pode ocorrer na relação de forças entre uma nova geração que se quer impor e o passado extraordinário daquele que foi o melhor jogador português de todos os tempos.

Esteve bem o novo selecionador nacional em convocar o experiente jogador do Al Nassr. Do ponto de vista estritamente técnico, e apesar dos seus 38 anos, CR7 ainda é um dos três melhores n.º 9 portugueses num top formado por Gonçalo Ramos, Cristiano Ronaldo e André Silva - Vitinha não tem sido opção no Marselha e Beto, da Udinese, ainda tem de subir alguns degraus. Mas Ronaldo não é, neste momento, o melhor ponta de lança; esse estatuto pertence a Gonçalo Ramos, um avançado que além de marcar golos oferece muito mais à equipa ao nível da intensidade, capacidade de pressing e criação de linhas de passe. É um killer que faz jogar. Felizmente para Martínez que os dois primeiros jogos serão frente a adversários fracos (Liechtenstein e Luxemburgo), o que facilita as coisas, mas não deixam de ser jogos oficiais, o que implicará uma escolha: na hora de formar o primeiro onze, irá o espanhol optar pelo magnetismo de Cristiano Ronaldo ou pela confiança de Gonçalo Ramos?

As declarações do novo selecionador de Portugal (muito bem na forma como se esforça em expressar-se no idioma) levam a crer que a opção pode recair no benfiquista. Poderei estar enganado, mas a forma como ele falou sobre CR7 na conferência de imprensa que se seguiu à divulgação da lista deixou nas entrelinhas a ideia de que Ronaldo pode ser muito importante para o balneário, mas não necessariamente a primeira opção no campo. Ao observar que o madeirense «pode passar a experiência que a sua carreira lhe deu» e as constantes referências a noção de «equipa», Roberto Martínez poderá ter aberto aqui um novo papel para Cristiano. E também não estou em crer que, a confirmar-se, Ronaldo não o saiba e o tema não tenha sido falado na conversa entre ambos na Arábia Saudita. Se assim for, chapeau para o espanhol que consegue abrir o jogo e manter a chama acesa do capitão; e aplausos para CR7 se aceitar o avanço dos tempos e adaptar-se a uma condição de não titular absoluto mas com vontade, futebol e alma para ajudar no que for preciso, seja dentro das quatro linhas (oportunidades não faltarão) ou na cabina, onde se forjam os grandes líderes. 

C ONTINUO em crer que se Cristiano tivesse sido transferido para o Manchester City em 2021 que hoje estaríamos a falar dele de outra forma. O coração e Alex Ferguson falaram mais alto ao empurrá-lo para o Manchester United, mas dá para imaginar o que seria Ronaldo numa equipa com o fluxo ofensivo criado no laboratório de Pep Guardiola. Penso nisso ao olhar para os golos de Erling Haaland. Um jogador que por vezes parece estar fora da engrenagem e que nem sempre fala a mesma língua de Gundogan, Bernardo Silva e De Bruyne já marcou 42 golos em 37 jogos. Ronaldo poderia até nem marcar tantos, mas iria faturar em momentos decisivos pelo conhecimento que tem do jogo. E talvez tudo tivesse sido diferente no Catar.

PS: Tive o privilégio de sair em reportagem pelo país e pelo mundo à procura de histórias e pontos de vista que nos davam densidade e desafiavam ignorâncias disfarçadas de convicção. A morte de Rui Nabeiro fez-me recordar com saudade esses tempos em que vinha da raia alentejana com o bloco de notas cheio e a alma redobrada. Quando hoje se fala nas preocupações sociais das grandes empresas já assistia a isso em Campo Maior há 20 anos, porém sem me dar conta, à data, da dimensão da obra do Comendador. Não há locais perfeitos, mas ali senti que as pessoas viviam mais perto da felicidade. Nunca mais voltei a uma local com um sentimento de pertença tão forte.