O nosso futebolzinho - parte 2

OPINIÃO04.03.202001:00

1 - Bem, não quero ser hipócrita nem ingrato: isto de ter subitamente passado para a frente do campeonato, recuperando oito pontos em quatro jogos a um Benfica que vinha de 16 vitórias consecutivas e que parecia já inalcançável e com o Marquês de Pombal reservado, foi uma dádiva caída dos céus. E, portanto, eu deveria estar eufórico e exuberante. Mas não estou. E não estou porque, depois da esforçada e merecida vitória contra os rivais da Luz no clássico do Dragão - onde a recuperação começou - seguiram-se dois jogos com vitórias arrancadas a ferros, contra o Vitória de Guimarães e o Portimonense (duas vitórias à Benfica), e depois, a vitória contra o Santa Clara, anteontem. E o que vi anteontem, no inaceitável e impraticável relvado de S. Miguel, foi - apesar da desculpa real do relvado - mau de mais para um líder do campeonato. Não sei se foi o pior, mas foi seguramente dos piores jogos de futebol a nível de uma primeira divisão que me lembro de ter visto. E se é certo que os rivais andam a jogar tão pouco ou ainda menos do que nós, isso não me tranquiliza, porque um candidato ao título não pode jogar tão pouco como o FC Porto anda a jogar.
E não desejando eu contribuir para as angústias familiares de Sérgio Conceição, não consigo evitar fazer uma pergunta de adepto: que proveito tirou ele dos 60 milhões de compras que a SAD do clube gastou em Julho passado para pôr à sua disposição uma equipa que jogasse um futebol minimamente aceitável e eficaz? É que momentos e ciclos menos bons todas as equipes têm, até as melhores. Porém, o problema desta equipa do FC Porto de 2019/2020 é que jamais deixou de habitar num patamar de absoluta mediocridade exibicional, desde que iniciou a época com a humilhante eliminação às mãos do Krasnodar, apenas com duas interrupções - por sinal e por felicidade, nos dois jogos contra o Benfica. De resto, e por muito que isso irrite ou ofenda o treinador portista, os que, como eu, já aqui andam há muitos anos a ver futebol, não se deixam tomar por parvos nem iludir por dádivas caídas do céu: desde que a época começou, esta equipa ainda não foi capaz de apresentar uma ideia de jogo minimamente agradável à vista, original, eficaz, apta a tirar partido das suas valências e que não seja monótona, repetitiva, cansativa de ver. Que os outros, que o outro, não estejam melhor, não me consola, nem me descansa. Apenas me confirma que, como aqui escrevi a semana passada, o nosso futebol actual é de terceira categoria.

2 - Dúvidas houvesse, a funesta jornada europeia foi a prova provada disso mesmo. Não esperava - nem eu, nem ninguém - que o Sporting desbaratasse uma vantagem de 3-1 e caísse às mãos de uns turcos inexistentes até agora, mas o restante massacre geral temia-o. O Braga, que foi quem esteve mais perto de contrariar o destino luso, ficou aquém do necessário, mesmo com o Rangers desfalcado no segundo jogo do seu temível avançado Morelos. O Benfica - «um clube de dimensão mundial», como o classificou há dias o seu presidente - só por sorte não juntou nova derrota caseira à derrota da primeira mão, face a um clube de dimensão regional e que não competia há dois meses. E o meu FC Porto, bem, esse foi sovado, sem dó nem piedade, pelo quarto classificado do campeonato alemão. Antes do jogo, disse Sérgio Conceição que tinha detectado os pontos fracos do adversário, mas, no decorrer do jogo o que se viu foi exactamente o contrário. E, no final do jogo, disse ele, em tom de lamento, que o Bayer marcara na primeira vez que fora à baliza do Porto; e na segunda; e na terceira. Como se isso fosse sorte e não resultado de treino e trabalho, individual e colectivo. Como se e facilidade com que os alemães construíam jogadas de golo e a eficácia com que rematavam para golo, colocando a bola fora do alcance do guarda-redes, em contraste com a repetida dificuldade portista em criar ocasiões para finalizar e a exasperante incapacidade em finalizar com categoria e eficácia fosse uma questão de acaso e não aquilo que distingue uma boa equipa de uma equipa banal ou medíocre, em termos europeus.

3 - Estou de acordo com José Manuel Delgado, sobre a reflexão que se impõe acerca da perda de qualidade competitiva das nossas principais equipas na Europa. Há equipas a mais no nosso campeonato e há uma distribuição estruturalmente injusta dos dinheiros televisivos, que contribui para uma cultura de facilitismo e correspondente falta de hábito de competitividade dos chamados grandes. Mas não são os únicos factores: também a existência de relvados inadmissíveis, de regulamentos, órgãos e doutrinas disciplinares e de justiça desportiva do século passado - ditados pelos próprios clubes - prestam uma contribuição importante para a falta de qualidade instalada. E, por fim, os hábitos de caserna dos nossos treinadores, que só se revelam verdadeiramente capazes (os que o são) quando passam a fronteira e se vêm forçados a competir num ambiente em que encontram adeptos mais exigentes, jornalistas menos bajuladores e accionistas que querem ver resultados. Onde não lhes é permitido remeterem-se a uma postura de prima-donas, imaginando-se detentores únicos de um saber oculto que a ninguém é licito pôr em causa.

4 - A falência técnica a que uma gestão irresponsável e incompetente (para dizer o mínimo) conduziu a SAD do FC Porto já ultrapassou a dimensão da preocupação que causa aos que amam o clube para se transformar também num motivo de vergonha pública. E - mais uma vez o digo - sem cair na ingratidão, que detesto - vergonha é o que falta aos responsáveis por esta situação para seguirem em frente, assobiando para o ar como se nada fosse com eles. Sem uma palavra aos acionistas, aos sócios e adeptos: uma explicação mais aceitável, um pedido de desculpa, um projecto de medidas correctivas, começando pelo corte nos seus sumptuosos salários e prémios de gestão. E, pior ainda, preparando-se para seguir para novo mandato para fazer mais do mesmo: os mesmos negócios ruinosos, as mesmas escandalosas comissões, a mesma incompetência, a mesma inevitável ruína. É preciso que alguém decente - não estes aventureiros de ocasião já anunciados - se chegue à frente e avance. Vai perder, com certeza, porque tudo aquilo está montado para que o poder não escape das mãos de quem lá está, como numa qualquer ditadura africana. Mas, pelo menos, servirá para acordar e abanar o clube. E dividir águas entre os que querem servir o clube e os que se querem servir do clube.

5 - As coisas também não vão melhores para os lados da Luz. A história dos vouchers, agora a ser destapada na sua verdadeira dimensão, é a ponta do icebergue de muita roupa suja que, garantem-me, ameaça desabar em breve sobre aquela casa. Mas só vendo acreditarei. E temo que as entidades de investigação se detenham a pensar nos timings -o final do campeonato, etc - e que, de adiamento em adiamento, a falta de urgência se confunda com a própria falta de necessidade de saber a verdade toda.

6 - À frente da mais portuguesa equipa que por aí anda (sete portugueses em campo contra o Tottenham), um treinador por quem eu nunca dei nada, Nuno Espírito Santo, prossegue uma notável carreira em Inglaterra, tendo agora humilhado em sua própria casa o grande José Mourinho, a referência deles todos. Mas, como diz um amigo meu, o toque de Midas de Mourinho, já era. Ou, se não era, parece, a caminho do seu quarto desaire consecutivo. E, pior do que isso, sempre com desculpas: os árbitros, a agressividade dos adversários, as lesões, os jogadores que não entenderam as suas instruções, o céu que estava cinzento. Um ciclo que acabou?

P.S.: A justeza dos dois penáltis que Fábio Veríssimo concedeu ao Benfica dependerão sempre de pontos de vista subjectivos ou clubísticos. Mas oito minutos de descontos na segunda parte? E, em cima deles, mais dois minutos, incluindo a espera pela cobrança de um canto já depois de terminado o desconto?