20 fevereiro 2025, 13:25
Velório do Prof. Manuel Sérgio será no domingo
Professor, filósofo e pensador do Desporto faleceu esta quarta-feira aos 91 anos
Este texto foi-nos enviado por Manuel Sérgio a 17 de janeiro. Era para ser apenas mais um, quis o Destino que fosse o último. Aqui fica, com a devida vénia ao pensador do Desporto e do Futebol
Como muitos o fizeram, li O Nome da Rosa, de Umberto Eco. A história passa-se na Idade Média e o autor conta-nos como um monge de nome Guilherme de Baskerville, acompanhado do jovem Adso (que só depois de velho narra o que viu), quer descobrir uma morte estranha, numa abadia do norte da Itália — morte que é a primeira de uma série de sete, que Baskerville interrompe ao desmascarar o culpado. No centro da abadia, levanta-se uma enorme biblioteca, considerada a mais importante e completa de toda a Cristandade. Durante a investigação, Guilherme de Baskerville encontra-se em concorrência com a Inquisição e com o seu incontornável representante Bernard Gui, o qual defende que os hereges são os homicidas que Guilherme procura, designadamente os seguidores de Dolcino, o criador de uma seita hostil ao papado. Consegue, através de horrendas torturas, arrancar confissões, favoráveis à sua tese, a vários monges. Mas não convence Baskerville. A conclusão a que este chega é bem diversa: conclui que as mortes não são obra de hereges e que os monges morrem, ao tentarem ler um livro misterioso, ciosamente guardado na biblioteca.
A cena final do livro põe frente a frente Baskerville e o assassino, um cego que era um dos monges mais velhos da abadia. Desmascarado, o assassino faculta ao investigador o livro que já havia provocado sete mortes. Tratava-se do segundo volume da Poética de Aristóteles (384-322 a. C.), uma obra desconhecida até então e na qual o Estagirita faz uma profunda reflexão, chegando mesmo a abordar a questão do riso. Acusado por Baskerville, Jorge, o assassino, tem um comportamento estranho e, em vez de esconder o livro, aconselha ao investigador a sua leitura.
Baskerville começou a leitura do livro, mas muniu-se de um par de luvas, pois descobriu que as páginas do livro se encontravam envenenadas, com um líquido que nelas deitara o monge criminoso. E não escondeu a questão seguinte: por que pretendia ele matar os monges que lessem a Poética de Aristóteles? A resposta foi esta: porque o livro falava do riso e o riso é o contrário da Fé, das tradições, dos bons costumes, designadamente o riso dos contestatários. Pergunta-lhe Guilherme: «Mas quais são os efeitos perniciosos do riso?»... Responde Jorge: «O riso é a fraqueza, a corrupção, o amolecimento da nossa carne. É a diversão para o camponês, a licença para o alcoólico e até a Igreja instituiu o Carnaval, espaço de muitos crimes e vícios. Portanto, o riso não passa de uma coisa vil (...)».
20 fevereiro 2025, 13:25
Professor, filósofo e pensador do Desporto faleceu esta quarta-feira aos 91 anos
Mas Baskerville queria saber mais: se há tantos livros que falam do riso, da alegria, por que só este lhe inspirava tamanho terror? Declara o criminoso: «Porque era do Filósofo (Aristóteles). Cada um dos livros desse homem destruiu uma parte da ciência que a Cristandade tinha acumulado, ao longo de séculos. Os primeiros padres transmitiram-nos o que era preciso saber, para sempre, sobre o poder do Verbo, e bastou que Boécio comentasse o Filósofo para que o mistério do Verbo divino pudesse ser questionado e parodiado. O livro do Génesis diz-nos o que é preciso saber sobre a composição do Cosmos e bastou a Física do Filósofo para que tudo o que nos foi ensinado fosse repensado. Cada palavra do Filósofo, em que (pasma bem!) há bispos e papas que acreditam, é um perigo para a cristandade.»
Jorge faz do livro de Aristóteles o pretexto das suas angústias, diante dos problemas da Igreja. Baskerville, ao invés, não teme o riso, nem a crítica, pois que chega mesmo a pensar num Cristianismo sem as taras dos tradicionais, dos repetidores, dos incapazes de uma luta áspera contra o vencidismo.
Como se vê, o riso, o anedotário, a mordacidade intencional dos dissidentes, dos críticos, dos resistentes, dos heréticos, que se opõem a qualquer cartilha ortodoxa, escrita per omnia saecula saeculorum, é considerado um perigo pelos dogmáticos, pelos conservadores, pelas instituições envelhecidas. Há muitos séculos, como hoje. Por isso, se as Faculdades de Motricidade Humana, ou de Desporto, querem contribuir para o progresso do desporto em geral e do futebol em particular, têm de saber estremar o trigo do joio: o joio dos que dizem hoje, ipsis verbis, o que já aprenderam há muito tempo, numa palavra só — os sebenteiros; o trigo dos que, humildemente, fazem suas as palavras de Sócrates: «Só sei que nada sei». O futebol (e o desporto em geral) precisa dos cursos superiores de Desporto (e até de cursos de treinadores), desde que deles ressalte um saber onde a maior saliência do magistério dos professores seja a insatisfação e a dos alunos a vontade da criação de um território, arvorado em independente, aberto aos heréticos de quem o Ter e o Poder desconfiam.
Hoje, infelizmente, ainda são poucos os que porfiam na pesquisa, na insatisfação, indo para além do que a universidade ensina. E assim tem saído da universidade um grupo diminuto de licenciados capazes de anunciar um futebol novo. No meu modesto entender, o futebol, como desporto que é, surge como um dos aspetos da motricidade humana (que assim ouso definir: a energia para o movimento intencional e solidário da transcendência, ou superação) e, como tal, é no âmbito das ciências sociais e humanas que deverá procurar-se o seu paradigma e a sua metodologia. Quem ainda não entendeu isto, duvido que possa transformar-se num grande treinador de futebol. Com o que o positivismo (e muitas ilações extraídas da mecânica) ensina, quase todos poderíamos ser treinadores de futebol. Mas o futebol não consente uma imagem tão redutora — a que, aliás, o futebol resiste vitoriosamente, porque nele há sonho, imaginação, sentimento, drama e comédia. Oiçam as declarações dos agentes do futebol. A sua linguagem não se confunde com um formulário algébrico. Sem tomar o encómio do cientismo, nem os sucessivos receituários de natureza económica, ainda fica muito por estudar na prática desportiva. Por isso ele é tão desconcertante e perturbador. Por isso ele é um semeador de perplexidades. Ele, quem? Se não há jogos, há pessoas que jogam – o futebol será o que os seus agentes forem.
Que belo texto, e uma lição que se aplica a vários sectores da nossa sociedade, não apenas ao desporto. Que raro é quem assim pense, especialmente neste país tão empoeirado e com tamanho cheiro a bafio. Descanse em paz Manuel Sérgio, deixa muitas saudades.