O mundo ao contrário

OPINIÃO23.12.202105:00

Neste circo à volta de Jesus está à vista que a maior parte dos personagens estão no tempo e local errados.Todos, menos o Flamengo

EIS como se pode entregar de bandeja uma eliminatória na Taça de Portugal a um velho rival. Pode até que o Benfica vença hoje o FC Porto no Dragão (é inquestionável que tem equipa para isso e para muito mais), mas as probabilidades baixam muito quando as energias de uma equipa, de um clube e dos adeptos estão concentradas numa possível saída do seu treinador em vez de direcionadas para o que realmente interessa. Não vale a pena vir com a lengalenga de que as notícias não entram no balneário; entram, claro que entram, pelo que os jogadores do Benfica vão entrar em campo com dois tipos de informação: aquela referente aos aspetos técnicos e táticos e a outra mais abstrata mas igualmente marcante - a de que o treinador que lhes preparou o jogo está a prazo.
O facto de Jorge Jesus se ter reunido com os dirigentes do Flamengo nas vésperas da deslocação ao Dragão, mesmo para dizer que para já não quer falar sobre o assunto porque está focado nos clássicos com o FC Porto, terá uma consequência que penso ser óbvia: muito dificilmente terá condições para continuar. Talvez nunca como agora o resultado frente a um velho rival determine o futuro imediato de um treinador.
 

Jorge Jesus, treinador do Benfica 


São complexas as circunstâncias que criaram este desfecho e na realidade nem se pode apontar culpados. Mais que tudo, é um mundo ao contrário, em que os personagens parecem estar no local e hora errados - todos, menos os dirigentes do Flamengo (já lá vamos). É evidente que Jorge Jesus não entra nos planos futuros de Rui Costa. É um treinador cuja competência não se discute, mas que foi uma escolha de Luís Filipe Vieira. Uma escolha arriscada e, fundamentalmente, pessoal. É um técnico, chamemos-lhe assim, do vieirismo, e é perfeitamente legítimo que o novo presidente das águias pretenda outro nome, outro perfil, outros ares, para dar início, de facto, à era do costismo.
Percebendo pelos sinais de que não é muito querido na estrutura (é apenas suportado de forma institucional) e muito menos entre os adeptos, Jesus faz aquilo que qualquer profissional e ser humano faria: admite no horizonte próximo  regressar a um projeto de sucesso e, mais que tudo, a um local onde é querido. Onde é feliz. Onde sorri como nunca sorriu. O problema é que tendo contrato com o Benfica e não impondo uma saída abrupta (para não perder dinheiro), opta pela procrastinação. Dizendo que não hoje para dizer sim amanhã. Tenta comprar tempo. Só que, tal como dizia Toni, «não há tempo para pedir tempo».
Já o Flamengo parece ser o único que se mantém coerente. Na esclarecedora entrevista que concedeu a A BOLA e A BOLA TV, o vice-presidente, Marcos Braz, foi cristalino ao recordar que o clube carioca sempre quis Jesus e que foi o Flamengo o prejudicado pelo raide de Luís Filipe Vieira ao Rio de Janeiro, há ano e meio, quando pagou a cláusula e resgatou-o no seu jato privado. Podia dizer-se que a tentativa de Braz em fazer regressar Jesus seria uma espécie de karma, mas sê-lo-ia se o abandono precoce do Benfica provocasse o mesmo sentimento de perda que provocou na imensa legião de adeptos do Flamengo em julho de 2020. Não será, obviamente, o caso: a relação de Jesus com os adeptos encarnados está a anos-luz da química que tem com a nação do mengão.  
Portanto, do que resultar do clássico de hoje, das duas uma: ou persiste este clima de adiar o inevitável (a saída do treinador) ou se dá a rotura. Rui Costa terá aqui a sua primeira decisão crítica: optar entre a estabilidade morna ou o corte para novos tempos mais quentes, independentemente de  quem suceder a Jorge Jesus. Certo é que o presidente do Benfica podia e devia ter lidado melhor com este circo à volta do atual técnico das águias. Liderar é antecipar cenários. Estava à vista de todos o que aí vinha.