O Marquês não tem culpa
O futebol não é tudo na vida. Na minha, pelo menos, nem é tudo nem o principal: estou sempre preparado para ver o meu clube perder ou ganhar e sei que essa é a lei do jogo, como é a lei da vida. Tendo isso presente, vou tentar ser o mais frio e comedido possível, num momento em que os portistas têm tantas razões para o seu direito constitucional à indignação. Vamos, então, a isso.
1. Desta vez, Duarte Gomes não tem razão alguma e, aliás, ficou isolado na sua opinião. O que aconteceu em Vila do Conde ao minuto 42 foi cristalinamente claro, sem necessidade de rebuscadas «análises técnicas»: houve um penalty contra o Benfica não assinalado, logo seguido de golo em off-side, mal validado. Onde a razão falha a Duarte Gomes é quando transforma o penalty em livre fora da área, sob o argumento de que foi uma falta continuada, iniciada fora. Ora, a menos que a regra tenha mudado, eu aprendi que a falta continuada deve ser assinalada no ponto em que termina e não onde começa - que é o que faz sentido. Porém, o principal é que não se tratou de uma falta continuada, mas de duas seguidas: na primeira, o tal craque de 80 milhões, Florentino de seu nome, não teve pernas para acompanhar Gabrielzinho e tentou travá-lo em falta entes de ele entrar na área e, não o conseguindo, vendo-o prosseguir a jogada e entrar na área, onde ficaria isolado, empurrou-o então com a mão nas costas. Foi uma segunda falta clara e decisiva - visto que a primeira não chegara para o travar. Penalty sem espinhas.
2. O off-side é tão descarado que a única questão que se coloca é porque razão o árbitro, o juiz-de-linha e, sobretudo, o VAR, o não quiseram marcar. Porque a palavra é mesmo essa: não quiseram.
3. Momento marcante é a cara de Hugo Miguel, enquanto esperava, distribuindo cartões amarelos pelos jogadores do Rio Ave, que o VAR se juntasse a si numa decisão que falsificou por completo o destino do jogo. A sua expressão dizia tudo.
4. Perguntam os benfiquistas porque razão o FC Porto só começou a queixar-se da arbitragem dos jogos do Benfica depois de ter perdido o jogo do Dragão e o primeiro lugar. A resposta é simples: porque foi a partir daí, quando se entrou na fase final e decisiva do campeonato, que as ajudas da arbitragem ao Benfica se tornaram um caso de escândalo público. Com o campeonato no início ou a meio, as más decisões de arbitragem ainda estão a tempo de serem emendadas em campo. Com o campeonato no final, elas decidem o título. Já vi o Benfica, até em anos recentes, ganhar o campeonato graças a ajudas determinantes do apito numa fase inicial, quando o futebol que jogava era tão fraco que precisava de ser amparado até encontrar o seu rumo: no final, a última imagem que ficava era a de um campeão por mérito, de cujas ajudas externas já ninguém se lembrava bem. Mas quando sucede no final, dá mais nas vistas.
5. Lembro-me, com um sorriso irónico, da frase de Luís Filipe Vieira quando o campeonato entrou na tal frase decisiva: «Que não haja casos de arbitragem até final!». Foi um ver-se-te-avias: Vila da Feira, foi um escândalo cujos comentários até ultrapassaram fronteiras, Braga foi outro igual, Vila do Conde foi o que se viu. E mesmo no Dragão - onde o Benfica até mereceu a vitória - ela só foi possível graças a duas generosas decisões arbitrais: a não penalização do empurrão de Seferovic a Manafá, que lhe permitiu tirá-lo do lance e efectuar o cruzamento para o primeiro golo, e o empurrão pelas costas, dentro da área, de Samaris a Brahimi. É preciso uma pessoa chamar-se Telmo Correia para conseguir afirmar, sem medo do ridículo, que «o Benfica não tem um ponto mal conquistado neste campeonato».
6. Compreendo bem que Bruno Lage diga que não fala de arbitragens, pois que desde que pegou no Benfica, não teve um só motivo para se queixar delas. Mas esperem (para o ano que vem) até aparecer a primeira decisão que ele ache que prejudicou decisivamente o Benfica, e verão como ele é humano. É muito fácil a atitude de não falar de arbitragens quando, jogo após jogo, ela só nos favorece.
7. A narrativa benfiquista afirma que o FC Porto foi o grande beneficiado pelos árbitros no primeiro terço do campeonato - o que agora permitiria ser compensado com a situação inversa. E quando recorrem à contabilidade de Rui Santos (agora transformado em pitonisa da contabilidade politicamente correcta), o primeiro caso que trazem à colação é o do Belenenses-FC Porto da primeira jornada, quando um penalty no último minuto dá a vitória ao Porto. Penalty que, segundo eles, não existiu e que logo contabilizaria dois pontos mal ganhos a favor do Porto. É verdade, concordo que aquele penalty, de bola na mão, não existiu. Mas onde se demonstra a desonestidade intelectual de quem argumenta com isso é esquecerem-se que o árbitro só o assinalou porque antes tinha assinalado um exactamente igual a favor do Belenenses, que colocara o resultado em 1-0. Eis o critério da infalível contabilidade RS.
8. Recuperar 7 pontos de atraso e ficar com 2 de avanço é, de facto, uma proeza. Mesmo considerando que, no entretanto, o caderno de encargos do FC Porto foi bem mais difícil que o do Benfica, com o apuramento para as finais da Taça da Liga e de Portugal e para os oitavos e quartos da Champions. Mesmo assim - e aqui contrariando algumas opiniões portistas - eu acho que a proeza é o FC Porto só estar a 2 pontos do Benfica e ter conseguido levar a decisão do título para a última jornada. Porque - e sem tirar o muito mérito que tem Bruno Lage (além do mais, um treinador que dá gosto observar e ouvir) -o que é anormal, digno do Guiness, é alguém pegar numa equipa e, em 20 jogos, ganhar 19 e empatar 1. Ninguém, absolutamente ninguém, se atreveu a prever que nos 20 jogos que restavam de campeonato, o Benfica só perdesse 2 pontos.
9. Este foi, disse António Oliveira, «um campeonato falsificado» em que as pessoas (os árbitros e não só) «se sentem já absolutamente impunes». Não gosto muito de alinhar em teorias da conspiração, em que o futebol é tão propício, mas tenho de confessar que, olhando para os jogos da segunda volta do Benfica, em cada um deles (excepto naqueles em que os adversários já tinham oferecido um golo nos primeiros três minutos) a sensação que tive sempre é que, por mais que as coisas se complicassem, no momento decisivo do jogo mão divina viria amparar o 37 do Benfica. Não tenho outra maneira de o descrever
10. Todos, seja qual for a nossa cor clubística, gostamos que, quando ganhamos, o mérito da nossa vitória não seja apenas reconhecido por nós próprios. E, num mundo ideal, assim seria. Mas, num mundo ideal, não teríamos visto arbitragens como as de Vila da Feira, Braga e Vila do Conde. E, porque, não há muito tempo, aqui mesmo reconheci o mérito de dois campeonatos ganhos pelo Benfica de Jorge Jesus (coisa que nunca vi um benfiquista fazer, em situação inversa), estou à-vontade para poder dizer que não esperem de mais ninguém, que não dos vossos adeptos, uma palavra de reconhecimento da justiça deste campeonato. Não posso jurar que o campeonato tenha sido falsificado, mas que no mínimo teve coisas que cheiraram mal de mais, isso, para mim, é claro. Todos vimos o pouco que o Benfica andou a jogar nestes últimos dois meses e, todavia, ganhou sempre. Cá dentro, porque lá fora é outra conversa - o que dá que pensar.
11. Um programa televisivo perguntava há tempos se os espectadores eram a favor de árbitros internacionais no que restava então de campeonato. Sem hesitar, gastei 4 euros a responder quatro vezes que sim. Tivesse isso sido realidade e não tenho dúvidas de que o Marquês de Pombal ficaria vazio no sábado. Independentemente dos escandalosos casos de jogo que empurraram o Benfica nesta fase final, outras coisas haveria com julgamentos diferentes daqueles a que o Benfica está habituado, tais como a impunidade disciplinar de que gozam João Félix ou o varredor de área Rúben Dias.
12. Ouvi Miguel Guedes afirmar que os árbitros que o Benfica encontrou em Moreira de Cónegos, Vila da Feira, Braga e Vila do Conde, constavam todos dos mails benfiquistas, na secção «padres para as nossas missas». Não sei se é verdade ou não, não costumo guardar memória dessas coisas. Sei que, por exemplo, o triste Hugo Miguel, de Vila do Conde, foi o mesmo árbitro que no ano passado se tornou motivo de chacota planetária, quando as redes sociais divulgaram as imagens dele a recuar e ir de encontro às costas de Danilo, expulsando-o. Mas chacota é uma coisa, desconfianças sérias é outra. É irrespirável o clima de suspeição que pende sobre a actuação dos dirigentes benfiquistas em anos recentes, sem que a Justiça dê o passo que se impõe para esclarecer as coisas. Sim ou não. Mas assobios para o ar e esperar pela prescrição é insustentável mais tempo. Por mais que queiram, não dá para esquecer a frase de Vieira de que, mais importante do que ter bons jogadores, era ter pessoas de confiança nas instâncias de decisão do futebol. Ou o célebre roteiro interno da estratégia para o século, onde se preconizava que o Benfica deveria controlar tudo: o futebol, a comunicação social, a politica, a própria Justiça.
13. Vão lá então festejar para o Marquês. Cada um festeja o que pode.